CRÔNICA E FILOSOFIA: O ABORTO DO ABORTO
Uma fala do jornalista Reinaldo Azevedo me levou a fazer novas reflexões sobre o caso da menor de 10 anos, que foi estrupada criminosamente por um familiar, desde os seis anos de idade. Pois esse caso estranhamente, está trazendo à baila a discussão sobre o tema do aborto, que na realidade, é uma discussão sobre a vida, e que acima de tudo, também é uma questão sobre o papel do Estado em relação ao que é o viver. E é pelo menos com essa perspectiva entre o aborto, a vida e o Estado que essa pauta deve ser formalmente orientada mais corretamente. Porém neste caso específico da menina violentada pelo tio, tanto os chamados conservadores como os denominados progressistas, estão problematizando o tema equivocadamente, em um caso onde ele não é sequer o fundamento ético e moral do estupro em discussão. Ou seja, estamos discutindo o aborto neste caso específico, em um espaço onde o próprio aborto já se encontra abortado.
Antes de entrarmos no caso de agora da menor estuprada pelo tio, é importante chamar a História para nos auxiliar a falar sobre o tema aborto. Neste caso, quando passamos por pensadores como Foucault, Deleuze e Agamber, somos incentivados a pensar na vida para além da maneira como nós a dimensionamos hoje sob a égide do Estado pós vitoriano, pois por mais que os mais conservadores invoquem a Bíblia como a palavra de Deus para protestar contra as práticas abortivas, não é fundamentalmente através de nenhum evangelho sagrado que nós estamos problematizando esse isso agora, seja para defendê_lo, seja para condená_lo, pois o tema aborto sequer faz parte do moralismo do texto bíblico, de Genesis a Apocalipse. Salvo em punições à abortos causados acidentalmente. Ou seja, é na dimensão da Biopolítica do Estado na modernidade de agora que esse tema está em discussão com todas as suas relações de poder. E Deus neste caso? neste caso, Deus se torna também um mero pretexto utilizado por alguns radicais mais impedernidos para angariar mais poder político usando Jesus como utensílio. E para a ala progressista mais radical, Deus se torna aquele cara chato lá de cima que gosta de bancar o fiscal de útero materno desde os mais altos céus. E desta maneira, continuamos a discutir o aborto com o tema aborto abortado do seu real significado histórico.
Por que o aborto não é um tema fácil? Não é um tema simples porque ele não faz parte apenas de uma pressuposição moral sobre a vida. O aborto é um assunto totalmente batizado pela dimensão ética da nossa realidade moderna, pós moderna e líquida. Razão pela qual é muito comum os mais conservadores tentarem trazer essa discussão para o simplismo da moralidade religiosa com afirmações do tipo: não façam aborto porque é pecado, Deus não gosta e tem um lugar no inferno separadinho só para quem abortou. Por outro lado, os progressistas mais radicais também advogam o seu simplismo dizendo assim: mas se a mulher quiser abortar, e daí? o corpo da mulher só pertence a ela.
Confesso que eu não sou a favor do aborto. Eu sou sim contra ele. Mas dependendo do tema, e esse assunto é bastante específico, a questão vai muito além de alguém ser contra ou ser a favor de uma prática. Inclusive é muito comum a gente ver especialistas que se dizem a favor da legalização do aborto, mas que ao mesmo tempo, também dizem que não são a favor do mesmo, mas sim favoráveis à sua legalidade por questões de saúde pública. O que também não é uma defesa tão simples assim. É por isso que em relação a esse tema, eu me encontro em uma espécie daquilo que eu costumo chamar carinhosamente de Ceticismo reticente, que no meu caso específico, é bem diferente daquele Ceticismo clássico. O Ceticismo clássico ocorre quando um pensador ainda não tem muita clareza a respeito de um tema. Com isso ele suspende o juízo até que alguma possibilidade do futuro possa eventualmente lhe revelar a realidade do que ele pesquisa ou pensa a respeito. Porém no meu Ceticismo alternativo, eu não tenho dúvidas a respeito da prática do aborto, pois eu me posiciono contrário a ela. Porém, não é o juízo que eu suspendo em relação ao mesmo, o que eu suspendo é a militância das minhas próprias convicções a respeito do tema. Ou seja, eu sou contra o aborto, porém não é uma contrariedade militante, e sim uma contrariedade persplexa perante a complexidade política, ética, social, moral e até espiritual a respeito desse assunto. Pois é nessa perspectiva ética em todas as suas dimensões reais que a gente tem que discutir esse tema, o aborto, para que o mesmo não seja irremediavelmente problematizado como agora neste caso da criança que foi estuprada pelo tio, pois neste caso em específico, estamos problematizando o aborto abortando esse próprio tema de si mesmo.
Mas para compreendermos esse assunto como discussão ética e moral, precisamos literalmente nos situar, para não realizarmos esse protesto atabalhoado e de discussão abortada sobre o aborto que setores da extrema direita está promovendo, sobretudo através dessas figuras patéticas que vão de um Silas Malafaia até a à uma Sarah Geromini da vida. Pois a problemática em questão não é essencialmente religiosa, e sim de cunho político, econômica, cultural e histórico. Pois a história dos abortos se confunde também com a História da Humanidade. Mas a consagração dessa prática como sendo um ato horripilante e pecaminoso aos extremos, é também na modernidade, uma relação de disputa de poderes de uma consciência Católica e religiosa que precisa a cada dia sobreviver em meio aos avanços da Ciência. Pois a Ciência gradativamente, passou a ocupar os lugares de interpretação sobre a vida, que era uma hegemonia da moral mítica e Católica até então. Mas por outro lado, também houve o aparecimento da "ética protestante" e do "Espírito do Capitalismo", que também passou a considerar a vida como um importante potencial produtivo a ser minimamente preservada. Neste caso, simplesmente conceder à mulher o direito de abortar, passou também a incomodar por demais a consciência pós burguesa da modernidade. Afinal de contas, o trabalhador é até hoje chamado de proletariado por causa de uma consciência pós capitalista de que há uma elite produtiva e especulativa, que deve possuir as máquinas produtivas, enquanto a "mulher proletária...... fabrica anjos para o Senhor Jesus, fabrica braços para o senhor burguês." Neste caso, para que as nossas discussões sobre o aborto não sejam pronunciadas a partir de referências históricas erradas, é a partir desses lugares objetivos que elas devem partir, para que a gente não fale sobre aborto abortando o próprio aborto das nossas discussões sobre o mesmo.
Evidentemente que as práticas abortivas são realizadas a muitos e muitos anos desde os primeiros agrupamentos humanos, que sempre usaram as mais diversas técnicas para isso. Técnicas essas que iam da ingestão de ervas abortivas até golpes na região do ventre, que fazia cessar o desenvolvimento do feto. Mas por que apesar dos protestos quase histéricos de hoje, os principais livros sagrados da antiguidade como as Escrituras e os Evangelhos, como o Alcorão, como o Talmude e etc não nos forneceram grandes discursos moralistas sobre o tema aborto? Pois se a minha memória não falha, nem na Divina Comédia de Dante Alighieri havia um lugar específico no inferno para quem o prática. Por isso, é muito importante termos uma noção mínima de como a vida era tratada pelas pessoas dentro dos primeiros agrupamentos humanos. É muito importante entendermos como essa consciência se desenvolveu como consciência sobre a vida entre as civilizações despóticas e como os conceitos sobre o que é o viver foram capturados pelas tradições capitalistas, pela indústria e pelo Estado.
Começando com as primeiras relações humanas com a natureza, que Deleuze e Guatari chamaram de "máquina territorial", a natureza era apresentada à consciência das pessoas como um evento fenomênico totalmente envolto no sagrado e no seu suposto potencial divino. Neste caso, todas as obrigações das pessoas para com o território eram pagas às autoridades e às instituições que representavam o território como era o caso dos caciques, dos pajés, dos xamãs e etc. Nesta época, não havia qualquer sinal da individuação subjetiva que nós passamos a conhecer mais próximos à modernidade, pois esses primeiros grupos humanos nutriam uma relação com a natureza onde o próprio corpo humano era visto meramente como um acessório dos mistérios naturais. Razão pela qual as tradições culturais sobre as forças da natureza eram codificadas no próprio corpo dos indivíduos através de vários simbolismos. Desta maneira, até o sofrimento e a dor eram também desejados pelas pessoas, até mesmo pelo indivíduo sacrificado, para que o próprio ato de sofrer representasse a relação de uma pessoa com o grupo e com os deuses. Inclusive era comum o sacrifício de jovens, adultos até e de crianças aos seres sagrados da natureza, sem que isso representasse qualquer forma de remorso na consciência dos primeiros agrupamentos humanos. E se a vida de homens e mulheres não era um fenômeno individualista digno de ser preservada sempre, a ponto de adultos, jovens e até bebês serem oferecidos como sacrifício ao sagrado, por que as pessoas desse primeiro passado estariam preocupadas ou não se uma mãe pretendia ou não pretendia abortar o seu filho? Lembremos que eles não tinham os pressupostos da individuação e da preservação da vida que nós temos nos dias de hoje, que surgem na emergência do Capitalismo. E sequer Estado como hoje nós temos eles tinham para mediar certos conceitos sobre a vida, pois é na perspectiva do Capitalismo, da industrialização e do Estado que estão codificadas as nossas problemáticas sobre as práticas de aborto agora. Não compreender isso é pensar em aborto abortando o tema da sua própria realidade.
Quando os textos sagrados que nós temos mais familiaridade foram produzidos, que são eles a Bíblia, o Alcorão e o Talmude, eles foram feitos entre várias fases de transição entre duas máquinas de organização social, que foram a "máquina territorial" e a "máquina despótica. Como já falamos da primeira, na segunda, as codificações de uma sociedade era medida através do corpo do déspota, ou seja, do corpo do rei, o qual era inclusive visto como um ser divino ou como um enviado dos deuses. Nesta fase, também não havia a individuação subjetiva que nos leva a crer que uma criança já é um sujeito de direito desde o ventre materno por já possuir uma alma. E muito menos existia a reivindicações de que o corpo de uma mulher pertence somente a ela, pois nos principais impérios despóticos que o mundo testemunhou como o império egípcio, como as dinastias babilônicas, como a realeza da Síria, como os reinos assírios, e até mesmo como as grandes monarquias inglesas, francesas, alemães e etc, o corpo dos súditos pertencia como direito aos soberanos, que por misericórdia, e por ser considerado um enviado do sagrado, concedia o direito das pessoa permanecerem vivas ou não. Neste caso, de nenhuma maneira, as discussões a respeito do aborto como elas existem hoje poderiam ser colocadas em questão, mesmo que as pessoas professassem a fé cristã ou outras formas de crença, pois hoje às nossas concepções, favoráveis ou não ao aborto, partem da ideia de que cada indivíduo tem o direito à inviolabilidade subjetivs do seu próprio corpo. Por isso falamos que os fetos já são indivíduos com direito à vida se formos mais tradicionais, e dizemos que as mulheres dever ter totalmente autônomas sobre o seu próprio corpo para realizar o aborto ou não fazê_lo.
Também foi dentro dessas fases de transição entre as máquinas despóticas e a máquina territorial que gregos, romanos e cristãos católicos falaram sobre o aborto como tema. Os gregos e os romanos não o condenavam. Sócrates e Platão diziam que era uma questão para as mulheres decidirem. E o médico Hipócrates, que é considerado o pai da medicina, não o aconselhava segundo os seus métodos de tratamento da saúde e da vida. Sobretudo o cunho filosófico do tema ganhou uma outra dimensão quando Aristóteles disse que até 45 dias de gestação, a alma não se forma no interior dos embriões. Razão pela qual essas idéias influenciaram a Patrística, e principalmente Tomás de Aquino, que recuperou o conceito aristotélico de que até o quadragésimo quinto dia a alma não é formada no interior do embrião. Mas todas as pessoas que pesquisam um pouquinho, sobretudo os que já leram ou pesquisaram sobre o livro O Martelo das Feiticeiras, sabem bem que o Catolicismo sempre teve problemas com qualquer forma de autonomia das mulheres. Razão pela qual sempre questionou qualquer aparência de liderança das mesmas nas comunidades humanas e até sobre os seus próprios corpos. Razão pela qual o Papa Pio reafirmou as definições de Aristóteles. Justiniano fez a mesmo no seu código do século V. O Concílio de Viena idem em 1312. Mas com a emergência do Capitalismo, da industrialização e do Estado Moderno, essas coisas começaram a mudar mais radical e gradativamente mesmo dentro do Catolicismo. Até que em 1869 o Papa Pio lX proibiu definitivamente as práticas de aborto no interior da religião e de qualquer instância dominada pela religião católica
Segundo Deleuze e Guatari, principalmente no Anti Édipo, as principais características do Capitalismo, que eles diziam que é a terceira máquina, a "máquina capitalista, é a vocação que ela tem de descodificar todos os códigos preexistentes. E isso essa máquina faz se apropriando de todos os códigos das tradições que estavam na máquina territorial e na máquina despótica, cujo a primeira codificava os seus simbolismos na terra e nos corpos de pessoas, e a segunda no corpo do déspota. Ao descodificar todos os códigos do simbolismo das máquinas anteriores, o Capitalismo tenta recodificá_los nos principais representantes do capital, que são hoje os bancos, a quem os cidadãos devem justificar a sua dívida para com a sua existência. E é neste contesto que o aborto foi trazido para os interiores das relações de poder proporcionadas pelo Capital e pelo seu processo de industrialização, que também descodificaram as primeiras noções sobre o aborto para que o tema seja agora discutido completamente descodificado das suas origens. E mais ainda, não reconhecendo totalmente a realidade dessa descodificação, agora esse tema se encontra ainda mais abortado de si mesmo, sobretudo neste caso da criança de 10 anos estuprada pelo tio desde os seis anos de idade.
Ao descodificar todos os fluxos das "máquinas desejantes" nos interiores de todas as suas contradições, o Capitalismo o faz na velocidade frenética do "aceleracionismo" promovido por todo o "inconsciente maquínico" da produção, que segundo Deleuze e Guatari, geram os "processos esquizos", os quais podem nos conduzir ao "corpo sem órgãos", ou seja, a um copapso dentro do funcionamento da própria máquina capitalista. Porém eu penso que agora, é no interior das discussões sobre o próprio tema aborto, que as discussões estão ocorrendo de maneira contraditória e abortiva, pois uma menina de 10 anos estuprada por um tio desde os seis, não é um caso de aborto em si, mas sim isso é um caso de estupro de vulnerável, pois se um adulto prática sexo com um cidadão abaixo dos 15 anos de idade, mesmo com o consentimento do ou da menor, isso não deve ser problematizado como um caso de aborto na sua essência, pois na nossa legislação o aborto continua sendo ilegal e tratado como crime. Neste caso, tratar esse caso como um tema de ser ou não ser a favor do aborto, é discutir o caso como se o mesmo fosse um corpo sem órgãos colapsado em si mesmo. Ou seja, falar desse caso como se a principal questão a ser discutida nele fosse o aborto, é falar de aborto abortando o próprio aborto do seu próprio tema.
Eldon de Azevedo Rosamasson
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