CRÔNICA E FILOSOFIA: DEUS PELA PORTA DOS FUNDOS

Os últimos acontecimentos envolvendo a vida pública brasileira, onde o "mito" político parace substituir a cada dia os principios da razão republicana, revelam uma verdadeira confusão que está ocorrendo entre a dimensão moral da vida privada das pessoas com a dimensão ética das nossas vidas no seu devido espaço público. Nesta fase, a própria opinião, que é um dos acessórios mais fiéis da moral, apacere a nós com os sabores mais letais da Necropolítica e da Cloroquina, que segundo alguns fanáticos, é a Cloroquina cloroquina, cloroquina lá do SUS, eu sei que tu me curas, em nome de Jesus. Isso tudo é um tipo novo de obscurantismo, principalmente na atual fase preto e branco, sem imaginação, sem criatividade, sem projetos construtivos, sem esperança e internacionalmente vexatória dessa opaca e patética ópera bufa que se tornou a vida política do executivo poder brasileiro, agravada agora pela grande crise do Corona Vírus, onde até Deus, que foi convidado a sair pela porta da frente da República brasileira desde Deodoro da Fonseca, resolveu agora entrar pela porta dos fundos da política do Brasil republicano. O que é bem curioso, porque nos dias de Jesus, "no principio era o Verbo e o Verbo se fez carne." Mas no Brasil de Bolsonaro, no princípes era o Verbo e o Verbo se fez comprimido.

A princípio, a vida das pessoas não era regida necessariamente pela dimensão pública da vida, que é a dimensão política da mesma, onde habita a cidadania. Mas os povos da Grécia, sobretudo os atenienses, a partir de aproximadamente o Vl século a.C, fizeram os grandes e primeiros ensaios do que nós chamamos nos dias de hoje de política, democracia e cidadania. Ou seja, no momento quando eles separaram metodologicamente em lugares diferentes o que é público e o que é privado, a política nasceu. A partir desse instante, os próprios deuses já não representavam mais o que eles eram no passado, pois agora, ao contrário da simpatia que o panteão divino nutria pelos seus prediletos, os grandes heróis da Mitologia helênica como Aquiles e Heitor, neste momento novo da aurora política, os seres divinos precisavam estar mais próximos às razões do lógos e das principais instituições políticas como o Areópago, o Partenon, a Ágora e as Assembléias públicas. Mas mesmo assim, nesse primeiro momento democrático, diante da constituição de um espaço político vigente, as divindades continuavam ainda a entrar pela porta da frente da política.

A posteriori, e guardadas as devidas proporções, a República romana deu continuidade a essa tradição de preservação do lugar público em separação quanto ao lugar privado, e revestiu a publicidade da vida com a excelência do Senado, que presidia o direito dos cidadãos. Mas eles ainda permaneciam com as divindades, agora grecoromanas no seu panteão político. Ou seja, os deuses continuavam a entrar pela porta da frente no mundo das organizações públicas e da cidadania romana.

Quando Alexandre Magno aboliu a autonomia das cidades estado da Grécia do período clássico, ele estava consequentemente, causando alguns hiatos históricos dentro da prática da política pública mais na História do mundo, que era vivenciada principalmente em Atenas. E qualquer tipo de imperialismo personificado em grandes monarcas da história, sempre apresenta uma tendência aparentemente natural à prática do autoritarismo e dos interesses mais privados na vida social e cultural dos povos. E somente com o movimento republicano esse mito começou a perder totalmente a credibilidade na tradição ocidental e em grande parte do mundo. Pois em momentos de grandes monarquias, mais que em qualquer outro, todos os deuses, santos e demônios são plenamente convidados à fazer parte do banquete cultural e a entrar pela porta da frente das comunidades humanas. Afinal de contas, são os deuses ou Deus que acomoda todas as dúvidas a respeito da autoridade dos monarcas, que são apresentados sempre como os enviados do Senhor para dirigir o destino dos mortais. E por incrível que pareça, por mais que a tradição judaicocristã e grecoromana já tenham sido desbaratadas na república desde os tempos da Revolução Francesa, e no Brasil desde 1889, parece que a sombra do deus dos crentes está sempre às expreitas, e agora disposto a arrombar a porta da nossa república reencarnando ora no Bolsonaro ora na Cloroquina, o Verbo que se fez comprimido.

Após a morte de Alexandre, os judeus mais letrados foram convidados para habitar em Alexandria, cidade fundada em nome de Alexandre, para traduzir em grego as versões hebraicas das Escrituras Sagradas, que se chamou Versão Septuaginta, escrita por cerca de 70 indivíduos. As incursões pós alecsndrinas de intervenção no mundo, inclusive por intermédio dos oficiais que sucederam a morte de Alexandre, geraram um grande caldo de cultura entre os predicados da cultura grega e entre os valores da tradição de outras culturas, principalmente a judaica, que vai ter importância capital na afirmação doutrinária do Cristianismo histórico, que continuará convidando Deus a entrar pela porta da frente e a fazer parte do seu grande banquete histórico e cultural, principalmente em relação a Idade Média.

Quando Roma foi pilhada pelos bárbaros, a Igreja se viu diante de uma oportunidade histórica sem precedentes, pois qualquer possibilidade de vida urbana deixou gradativamente de ter o glamour de outrora. Foi nesse momento que os mosteiros passaram a preservar os valores clássicos da cultura grecoromana e judaicocristã. Nesse período histórico, um outro papel importante da Igreja foi ser a grande mediadora da vida social e a principal arregimentadora do estilo de sociabilidade medieval baseada no Teocentrismo, que procurava unificar os valores clássicos e racionais da filosofia  com os princípios da fé cristã. E talvez em pouquíssimos momentos da história da humanidade, a vida social dependeu tanto de Deus e do convite para que ele permanecesse entrando pela porta da frente das principais instituições da sociedade. Pois na Idade Média, era o sagrado que dizia o que é a realidade quase como um todo.

Porém a partir do Renascimento, a vida e a realidade começou a ser vista de uma maneira relativamente diferente pela percepção dos homens, e o Antropocentrismo passou a substituir gradativamente o Teocentrismo. Porém Deus ainda permanecia sendo uma boa referência na vida social, só que agora entrando  e fazendo parte do banquete através de uma porta cada vez mais estreita, e com lugares cada vez menos honrosos à mesa.

Essa porta se estreitou quase que por completo no advento da Ciência, pois até os idos da Idade Média, a natureza e o corpo humano eram tidos como um verdadeiro mistério de Deus, pois só ele poderia conhece_los plenamente. Mas com a introdução do método científico a partir dos séculos XVI e XVII, o ser humano experimentou de uma vez por todas os deliciosos sabores frutíferos da árvore do conhecimento.

Mas foi com o advento republicano que Deus recebeu o xeque mate de uma sentença definitiva da parte da sua criatura. Pois a república, ao destronar os reis e ao desmistificar por completo a possibilidade de que o governante é o ungido do Senhor, ela secularizou e humanizou os valores da política. E agora, o poder republicano deveria sim ser representado por atributos humanos de pessoas teoricamente competentes para isso. Ou seja, na República, Deus foi educadamente convidado a sair da vida pública pela porta da frente levando todas as suas promessas de bençãos às pessoas boas de coração, levando todos os seus poderes e olhares de fogo e juízo eterno e carregando toda a sua justiça sempiterna, que agora passara a ser um critério unicamente histórico, temporal e humano.

O Brasil participa desse assédio histórico à autoridade absoluta de Deus como o guardião dos povos, pois todos os conceitos republicanos que nós construímos desde 1889, são valores de que nós temos e devemos ter um Estado laico, e que o sagrado deve fazer parte da nossa vida privada e da esfera dos costumes, e não mais dos nossos interesses republicanos. Pois a  Constituição Cidadã de 88, confirma por A mais B, a primazia de um Estado sem Deus, que remete os valores da prática religiosa para o âmbito do sentimento particular, e não do interesse público.

Porém o que está ocorrendo agora é algo extremamente exótico do ponto de vista social e político, pois quando a Constituição foi celebrada, todos, exceto o Partido dos Trabalhadores, aceitaram quase todos os valores republicanos da nossa democracia, e consequentemente, a não discriminação por hábitos sexuais dos cidadãos que tem como estilo de vida a homossexualidade por exemplo, pois isso está no artigo constitucional que fala sobre as liberdades individuais, que dão tanto o direito de uma pessoa ser evangélica e dizer que todos os gays vão morar no quinto dos infernos, como a mesma Constituição, dá o direito à Comunidade GLS de expressar também publicamente o afeto que eles nutrem pelos seus parceiros. Caso contrário, seria uma discriminação, o que é inconstitucional e uma espécie  de entrada de Deus pela porta dos fundos da República para se intrometer em assuntos que não lhe dizem respeito.

Me lembro como se fosse hoje, que quando eu era ainda menino e fã dos gibis do Fantasma, esse herói costumava beijar a sua parceira na boca, e ninguém reclamava de atos obscenos e impróprio para menores por causa disso. Afinal de contas, o beijo, uma vez não criminalizado pela lei, nunca foi considerado pornográfico, obsceno ou impróprio para crianças e adolescentes. E por que agora, em pleno século XXl e ao arrepio da lei, um beijo entre pessoas do mesmo sexo tem que ser considerado dessa maneira, e revistas com tais carícias têm que ser vendidas lacradas? será isso mera discriminação ou tem algns outros interesses embutidos nessa polêmica toda? Será que é mais um exemplo de um Deus que insiste em entrar pela porta dos fundos das leis da República?

O que está ocorrendo, é que parte das lideranças religiosas, orientadas por alguns indivíduos mais radicais como o bispo Edir Macedo, como o prefeito Marcelo Crivella e o sempre histérico pastor Silas Malafaia, lideram uma população de ramificações cristãs muito obedientes às suas orientações em grande parte.Todos eles líderes, que estavam inclusive próximos à Constituição Cidadã de 88, corroboraram também para  com a confecção dessa carta magna de um Estado laico. Pois na época, todos esses caras só estavam preocupados com uma coisa, que os privilégios disponíveis às igrejas continuassem, também para que as agremiações cristãs continuassem a ter o direito de não pagar muitos impostos. Para isso, e como a preocupação era também essa, praticamente nenhum deles estava lá, no final da década de 80, questionando a laicidade do Estado e o devido direito à vida sexual da comunidade LGBT como um dos seus fundamentos primcipais, que aliás, é um direito, não apenas presente na legislação do nosso país, mas na própria Declaração Universal dos Direitos Humanos. Ou seja, as lideranças religiosas também participaram do grande complô histórico que convidou educadamente Deus a sair pela porta da frente de quase todas as república democráticas do mundo, mas no Brasil agora, os caras cismaram de convidar o Deus da Bíblia a entrar sorrateiramente pela porta dos fundos  de uma república laica para excomungar a comunidade LGBT através de imposições da máquina pública. Mas para isso, eles vão ter que propor uma outra declaração universal dos direitos humanos, e consequentemente, uma outra e mais nova constituição para a nossa república. Só não sei se vai dá pra chamá_la de constituição cidadã, e muito menos de constituição democrática.



Eldon de Azevedo Rosamasson

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