CRÔNICA E FILOSOFIA: ORGULHO E POLÍTICA

Uma dos provérbios de minha autoria diz assim, "o orgulho é bom, desde que não seja mórbido, a arrogância é bela, desde que não seja contra e que não deseje  mal a quase ninguém."

Confesso que não tenho muitos problemas com a existência do indivíduo orgulhoso, soberbo ou arrogante, salvo se essa arrogância, soberba ou orgulho for praticada por um cidadão convictamente ignorante. Ou melhor, o meu problema não é com a altivez serena de quem costuma saber das coisas, mas quando ser um altivo é um ato realizado por aquele sujeito que pratica a preguiça intelectual da burrice militante, e ainda gosta de bancar o professor de Facebookologia e Watzappologia na web, como se essas plataformas fossem as fontes mais seguras na construção do conhecimento, isso me irrita especialmente. Sobretudo quando o cara se utiliza das redes sociais dolosamente para desinformar as pessoas. Mas a carraspana de quem é um bom conhecedor porém eventualmente orgulhoso, soberbo ou arrogante, que para conhecer primeiro partiu da constatação de que não sabe quase nada e por isso precisa aprender muito, eu até sou capaz de tolerar. Pois o mesmo costuma saber bem, mas sempre partindo do pressuposto de que para chegar ao privilegiado lugar dos muitos conhecimentos, ele precisou pesquisar e estudar muitíssimo. Mas a arrogância do ignorante dotado da vocação da preguiça intelectual me irrita profundamente, pois é uma arrogância que faz a mediação dos lugares da ignorância com a estupidez em um diálogo profícuo com a insensatez. E digo mais, esse indivíduo como ator político no mundo de hoje, e especialmente no Brasil, em muitas oportunidades, tem dominado e roubado a cena política, se impondo inclusive aos estudiosos, à universidades e aos homens e mulheres de pesquisa. Desconfio que hoje no Brasil esteja havendo uma glamourização da ignorância e da burrice, ou seja, tá na moda ser burro e arrogar_se da própria sandice.

Orgulho, soberba e arrogância fazem parte de uma mesma família ética e moral. E que família ética e moral é essa? a família ética  e moral da vaidade. Quando o sábio Salomão por exemplo, dizia sob várias nuances do comportamento humano que "tudo é vaidade e nada mais que vaidade debaixo do céu", o mesmo estava empenhado na seguinte orientação, ele estava dedicado à orientação de que aqui na terra tudo não vai além do que é efêmero e passageiro. Neste caso, o "temor do Senhor é o princípio da sabedoria", segundo ele, porque o que não está sujeito às coisas de Deus, leia_se, o que não pertence a uma missão ou a um objetivo maior que esse mundo, pertenceria ao reino vago e obscuro de todos os significados da vaidade.

Citar Salomão em um caso como o do tema destas linhas, é uma  boa assertiva penso eu, porque nós estamos tratando do maior de todos os sábios do Antigo Testamento segundo a tradição dos judeus. E dentro dessa tradição, o que seria de fato o orgulho, a soberba e a arrogância, esses grandes aliados conceituais da vaidade? Mas antes de fazermos essa descrição, precisamos buscar exatamente o contrário do que é a vaidade em toda a sua genealogia ética nessa mesma tradição, a humildade, uma vez que ela é tão significativa na construção dos nossos pressupostos morais e moralistas, pois é a partir da cultura judaicocristã que nós estamos tratamos do tema proposto neste texto, orgulho e política

Quando o Deus da Bíblia se revela na narrativa do livro sagrado, ele se mostra, dentre muitos dos seus predicados, como um Deus que é Jeová Kadosh, Kadosh, Kadosh, ou seja, ele se dá a conhecer como o Senhor Deus que é Santo, Santo, Santo. Mas uma das características mais marcantes dessa santidade, que é puramente divina, é que como Deus que é Santo, Santo, Santo, ele se separa total e plenamente de todos os aspectos da natureza do homem, que é uma natureza que faz o ser humano ser irremediavelmente pecador, pecador, pecador. Neste caso, é aí que está a principal de todas as raízes do que é ser uma pessoa vaidosa, orgulhosa e soberba dentro da tradição judaicocristã, pois ser um orgulhoso nesse caldo de cultura é o indivíduo não reconhecer a soberania plena e absoluta do Deus Criador, e consequentemente, dos seus profetas enviados. Com isso, é o querer impor a sua muitíssima limitação como ser humano contra tudo o que representa a vontade e a soberania do Deus de Abraão, Isaque e Jacó, que é a vaidade judaica e cristã. E essa tradição abre um precedente conceitual que nos acompanha até os dias de hoje, e que versa sobre o que é a vaidade para nós, pois a vaidade neste caso, ocorre quando um indivíduo dá as costas para os valores mais altaneiros e significativos da vida, que pode ser a sua crença em Deus, que pode ser os valores da pátria, que pode ser os valores da família, que pode ser os valores da honra, que pode ser a busca da felicidade, etc e etc, para se prender naquilo que é de quase nenhuma importância para uma vida cheia de significados.

Quando comparamos essa tradição judaicocristã com a cultura grecoromana, vemos um outro modo de relação com o orgulho, com a soberba e com a arrogância, pois a maneira como as mitologias desses povos do passado aparecem a nós em Afrodite, em Júpiter, em Atenas, em Hércules, em Aquiles, em Heitor e etc, é a partir de deuses e semideuses de muito orgulho, de muita soberba e de muita arrogância. Pois com um apanhado efêmero à leitura de um Homero, com o mínimo de curiosidade pelas aventuras de uma Eneida e com um pouquinho de leituras breves de Sófocles, Ésquilo e Eurípides, percebemos que ao contrário das tradições judaicocristãs, os deuses dessas mitologias não se diferenciavam muito dos sentimentos e dos comportamentos dos  humanos, salvo nos seus devidos limites, pois os deuses podiam fazer de tudo, mas não os homens e os heróis. Esses conceitos sobre os seus deuses influenciarão futuramente toda a representação de um espaço onde o orgulho, a arrogância e a soberba vão poder aparecer sem a interiorização da culpa judaicocristã. E esse lugar será também o espaço público da política, que surgirá primeiro em uma cultura grega, e depois curiosamente, em uma sociedade  judaicocristã ocidental.

Evidentemente, nas suas primeiras manifestações atenienses, a política, a cidadania e a democracia não eram totalmente secularizadas, pois os deuses da cidade estavam presentes no próprio discurso político, a ponto de ser também em nome deles que Sócrates foi sentenciado à morte com sicuta. Mas esses deuses eram principalmente entidades das instituições públicas que foram criadas nesses dias, que incluíam o Partenon, a Ágora e as Assembleias públicas. Mas lembremos de uma coisa muito curiosa, se nem nos tempos mais remotos os deuses se separaram do que aparece a nós como orgulho, soberba e arrogância na Grécia, não seria na época da areré política que os cidadãos não seriam picados direta ou indiretamente pelo vírus histórico do que aparece à nossa consciência como orgulho, soberba e vaidade.

A mais evidente prática política aparentemente secular da Grécia Clássica se deu por intermédio dos sofistas, pois eles abstrairam por completo o ser e os deuses do discurso da ética e da moral, alocando toda forma de bom senso a um bom discurso político, a ponto de Protágoras dizer a celebre frase, "o homem é a medida de todas as coisas." Neste caso para os sofistas, a retórica e a oratória feitas com o máximo de exatidão, seriam a aparência a ser alcançado como a "virtude" na política. Os sofistas com o seu método, deram vários suportes conceituais para que a gente percebesse o orgulho, a soberba e a arrogância de outra maneira, sobretudo na história da consciência cristã ocidental, pois nessa consciência, buscar a centralidade das virtudes da vida no próprio homem, como pensavam os sofistas, seria estar em meio aos princípios genealógicos do orgulho, da soberba e da arrogância. E nestes princípios habita a vaidade, onde tudo é vaidade, e nada mais que vaidade debaixo do céu. Esse precedente histórico fez que com o tempo, nós abríssemos as portas para o que eu chamo carinhosamente de a doce vaidade, a qual será historicamente higienizada  com outros conceitos como o conceito de amor próprio e com o conceito de autoestima, que liberarão as pessoas para amar a si mesmas, mas sem sentir o mínimo de culpa cristã por isso. Aqui eu percebo uma grande oportunidade, a oportunidade de sermos orgulhosos, vaidosos e quiçá soberbos, sem com isso nos sentirmos os piores de todos os seres humanos. Mas será que é possível salvar esses sentimentos tão mal afamados entre nós dos mármores do inferno para conduzí_los ao caminho do céu? será que o orgulho, a soberba e a vaidade têm salvação?

Quando estávamos vivendo nas primeiras comunidades humanas, nós vivíamos a vida de um éthos, pois não havia o conceito de vida biológica e muito menos existia a ideia de liberdade individual. A vida era a vida do éthos comunitário. Com isso, até o fato de sermos aparentemente orgulhosos ou humildes, era pensado em um homem que pertencia muito mais à sua comunidade e ao imponderável da vida, dos homens, dos deuses e da natureza que outra coisa. Mas com o tempo, batizamos os nossos sentimentos de orgulho, de soberba e de vaidade do seu principal aliado moderno, pós industrial e pós moderno, o individualismo. Com isso, a partir da existência incontestável da individualidade e do individualismo, eu gostaria de fazer algumas perguntas, será que é mesmo possível salvar o orgulho, a soberba e a arrogância da sua péssima reputação histórica? E se nós, a exemplo das pessoas da antiguidade, revestíssemos o orgulho de um éthos? mas agora de um éthos do individualismo? E se nós, ao invés de investirmos em um individualismo de orgulho mórbido que só é capaz de olhar para o seu próprio ventre, não passássemos a ter orgulho, soberba e até mesmo vaidade diante de declarações como essas, eu fiz muita coisa pela humanidades, eu fiz muitas coisas para que todos pudessem viver melhor e com mais dignidade e justiça social, e vocês, fizeram o que? ficaram só engordando com as regalias do seu próprio conforto e não fizeram nada para auxiliar a maioria? penso que esse orgulho seria muito bom, pois ele seria aquilo que eu chamei carinhosamente de a doce vaidade, uma vez que esse orgulho, que  essa soberba e que essa arrogância poderiam ter a oportunidade de ser sim bastante construtivos, se elas fossem possíveis pelo menos como uma grande e mais nova utopia, a utopia do orgulho, a utopia da soberba e a utopia da vaidade construtiva. Seria a meu ver, uma boa apropriação desses sentimentos, que me parecem praticamente inalienáveis da condição humana, para que esses três sentimentos pudessem servir ao bem estar de todos. Sendo assim, o orgulho, a soberba e a vaidade teriam uma excelente oportunidade para expiar todos os seus pecados por terem presenteado a história humana com as Cruzadas, por terem nos brindado com o vinho amargo do Nazifascismo, por terem nos empurrado goela abaixo as ditaduras comunistas e capitalistas do mundo, etc e etc. Pois definitivamente, esse orgulho mórbido que só é capaz de olhar para o seu próprio ventre é um dos principais capitais políticos de grande parte das contradições do mundo quase sempre, e que englobam as nossas principais desigualdades e as nossas grandes corrupções do Estado e da sociabilidade antiga, medieval, moderna e contemporâneo.

Até o século XVl aproximadamente, tinhamos ainda algumas representações de que o ser e de que a verdade e Deus se uniam na gestão das cidades, e pensávamos que a política poderia ser possível como ideias predominantemente sagradas. Ainda se acreditava sem questionamentos que a gestão das cidades pudesse ser feita sob o pretexto da supervisão de Deus, que com os seus olhos de fogo e juízo que a tudo e a todos vê, nomeasse os princípes dos povos. Mas dentre muitos questionadores, a presença de Maquiavel com a sua obra clássica, o Principe, desnudou completamente a figura do governante, que agora passou a ser visto dentro do que a política sempre foi desde os gregos da cidade de Atenas, o palco da aparição da coisa pública, e não o lugar da verdade. Não que outrora houvesse sido diferente, o que ocorria em outras épocas, é que a própria liturgia dos cargos dizia que a governabilidade era uma questão de linhagem de sangue, de honra e virtude consanguíneas e de vocação divina. 

A partir do momento que Nicolau Maquiavel despiu a ética política de qualquer ideia de vocação sagrada, ele estava ajudando a fundamentar uma consciência que se consagraria definitivamente com a fundação da República moderna a partir dos séculos XVlll e XlX. Essa consciência da contas de que agora não há mais Deus e os homens se tornaram uma espécie de lobos solitários diante de uma terra e de um mundo a serem geridos com leis, mas sem Deus para nutrir os corações humanos de esperança política. Pois os deuses foram gradativamente expulsos da república e aprisionados nos interiores da vida  famíliar e na privacidade dos sentimentos religiosos. Com isso Maquiavel demonstra para todos nós o que a política sempre fora desse os gregos, um grande palco de apresentação, não da verdade dos deuses, mas da glória humana na busca e na manutenção desesperada do poder. Desta maneira, podemos enxergar, salvo se não quisermos, que há sim na política, um espaço possível para a construção da ideia do orgulho, da soberba e da vaidade como uma grande utopia que possibilitaria as pessoas a construir um mundo melhor, pois só há o homem na política, e o orgulho não é mais um pecado que ofende a Deus. E esse tipo de arrogância do bem pode até colocar os dedos em riste e dizer, eu fiz, eu ajudo a construir um mundo melhor e mais justo para todos, você não, pois você faz parte do orgulho, da soberba e da vaidade mórbida de quem só trabalha para si! Mas para isso, precisaremos urgentemente frear e combater principalmente no Brasil de hoje, a arrogância política  da ignorância alimentada estranhamente pelo elogio da obscuridade, da estupidez e da burrice. Pois assim como tudo o que é construtivo no mundo, a doce vaidade precisará e muito do conhecimento, das pesquisas e das universidades para propor o que eu chamo carinhosamente de novo Iluminismo, o Iluminismo da vaidade.

Eldon de A Rosamasson

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