CRÔNICA E FILOSOFIA: A DISFUNÇÃO DO VERBO DELETAR

Uma super dedicada, comprometida e competente professora do Ciep 016 em São João de Meriti, Catiane, nos relatava a poucos dias a respeito da sua muitíssima decepção com o resultado apresentado pelos seus alunos na prova de Matemática. E a queixa dela é uma das mais comuns entre nós professores nos dias atuais, a qual faz a seguinte pergunta, por que os nossos alunos não conseguem aprender ou reter informações por um período relativamente mais longo? E no caso específico supracitado, ela testemunhava inclusive, que os resultados da aprendizagem nas suas aulas pareciam ser os melhores possíveis, inclusive com uma participação muito boa dos jovens antes do dia da prova. Mas refletindo sobre disso, eu tenho um pensamento a respeito, pois entendo que uma das razões que levam os nossos alunos a não mais aprenderem com a devida retenção das informações fornecidas, é que eles a muito tempo esqueceram_se de se esquecer, e consequentemente, substituíram as funções do verbo esquecer pelas disfunções do verbo deletar. Só que isso não pára por aí, pois essa capacidade de não guardar informações por tempos relativamente longos, tem sido um dos capitais políticos mais presentes no próprio discurso de muitos homens públicos, que falam uma coisa agora pela manhã, que mudam a sua versão durante a noite e que aparecem com uma terceira fala na manhã do dia seguinte sem nenhum compromisso com a vergonha na cara. Que fenômeno é esse afinal? será mais uma das armadilhas da disfunção do verbo deletar?

Desde o dualismo platônico principalmente, existe um conceito de que a verdadeira aprendizagem de uma pessoa está nela ter a capacidade de se lembrar das coisas que esquecera em lugares excusados da consciência. Pois Platão compreendia que quando a nossa alma vem habitar na terra, após deixar o mundo perfeitamente  racional das ideias, ela se banha no Rio Letes, o rio do esquecimento. A partir desse momento, a habitação obscura do nosso corpo realiza segundo ele, a tarefa do esquecimento antropológico a respeito da nossa verdadeira identidade, que estava presente no mundo das idéias perfeitas da pré encarnação. Com isso, Platão propunha que através da dialética, a sabedoria fosse construída através da lembrança racional e consciente do que nós éramos antes do esquecimento antropológico.

Mas diferentemente de Platão, quando Freud criou a Psicanálise, o grande ponto de mutação conceitual a respeito do ser humano, e consequentemente da aprendizagem das pessoas sobre si mesmas, foi a descoberta do inconsciente. Com a Psicanálise o médico propunha uma metodologia para que o comportamento humano fosse compreendido sob a luz, não somente da consciência intelectual, mas também através dos valores que estão excusados nos interiores do inconsciente. Freud queria  com isso, chamar a nossa atenção para as coisas que nós nos esquecemos, mas que poderiam nos auxiliar nos resgate da memória e do autoconhecimento. Coisas essas que uma vez não compreendidas a contento, podem segundo ele, não somente impulsionar os seres humanos através de desejos desconhecidos e enganosos, mas também, isso poderia nos levar a lugares e atitudes que até nos prejudicam, se não temos a devida consciência  das muitas motivações internas que nos conduzem a muitas das nossas intenções, pensamentos e ações. Evidentemente, eu não estou com isso apelando para os mesmos tempos e possibilidades da memória dos dias de Platão e de  Freud, afinal de contas, nenhum deles vivenciou o boom dessa nossa era digital. Mas penso que seja necessário pensar no tempo da memória nos nossos dias quando a frequência de mentiras deslavadas por parte de pessoas públicas se multiplicam no mesmo ritmo da bolsonarisação cara de pau crescente da política, onde o próprio presidente diz que falou alguma coisa por diversas vezes, mas fala que não disse bem aquilo em algumas poucas horas depois. Depois disso tudo, nos aparece um ministro da educação que diz que tem pós doutorado sem ter concluído sequer o curso de doutor, e que absurdamente, ainda apareceu com uma tese de mestrado plagiada segundo pessoas e instituições que tiveram acesso a sua suposta tese de mestrado. E por último, como um prefeito, me refiro ao prefeito do município do Rio de Janeiro Marcelo Crivella, fala que o cartão para a merenda dos alunos carentes que estão em casa por causa da pandemia não foi liberado para as famílias por causa de uma decisão do Ministério Público, e o mesmo Ministério desmente o prefeito em uma nota no mesmo dia? Será que as pessoas fazem tudo isso porque elas perceberam que hoje o tempo da memória coletiva é outro, e que agora os indivíduos se esquecem facilmente de quase tudo pelo simples fato de que hoje nós substituímos definitivamente as funções do verbo esquecer pelas disfunções do verbo deletar com a sua incrível velocidade de deformar informações?

De fato, Platão e Freud nos legaram algumas máximas muito importantes, que afirmam que aprender é ter contato intuitivo com os objetos do conhecimento. Porém com o tempo, nos esquecemos dessas informações, que ficam guardadas e armazenadas lá no interior do que nós chamamos de subconsciente, de inconsciente ou até mesmo de agregados psicológicos da consciência, que ficam distribuídos no interior das nossas câmaras interna. Mas para que o conhecimento complete o seu curso, a nossa mente tem essa capacidade de buscar as informações humanamente esquecidas em nós, para que elas se tornem peças importantes na construção histórica dos nossos saberes. Negar isso, é simplesmente estar a mercê desses tempos de pós verdade onde o saber não necessitaria mais dos lugares objetivos para a construção do conhecimento, que nós chamamos tradicionalmente de fontes. E muito embora pareça muito revolucionário dizer que uma fonte oficial precisa ser esquecida em cada jogo da digitação do real, as palavras ditas por nós ainda não perderam completamente o seu lugar no tempo para que uma pessoa poste ou diga as coisas, e depois simplesmente fale que não postou ou que não falou, pois ainda vai demorar muito para que nós deixemos de ser a principal fonte de nós mesmos.

Quem nunca viveu uma grande sensação de contentamento diante de um saber que lhe sobrevém? pois quando nós somos atraídos por algo que nós nos identificamos e nos interessamos em aprender a respeito, a ponto de acharmos que temos vocação para o mesmo, a impressão que a gente tem é que nós já tivemos contato com aquilo em algum lugar do tempo ou fora dele. Isso é o que eu chamo carinhosamente de o deja vu do saber, que nos dá a impressão de que esse mesmo saber que tanto nos atrai é alguma coisa da qual nós já sabíamos desde quase sempre. A coisa é tão séria, que essas experiências motivam até grande parte das teorias espiritualistas a respeito das nossas supostas vidas passadas. Por exemplo, eu tenho um fascínio bem especial pela cultura grega, o que também me motivou a me interessar pela Filosofia. Porém o primeiro contato que eu tive com a Paidéia, foi através de Monteiro Lobato quando a Rede Globo, lá pelo final da segunda metade da década de 70, transmitiu a série Minotauro do Sítio do Pica Pau Amarelo. Ness série, o monstro que é metade homem e metade touro, raptou a tia Anastácia e a levou para o seu labirinto, para que ela fizesse dos seus bolinhos para ele saborear diariamente. Com esse fato trágico, a espertíssima Emília intuiu que o sumiço da velha negra havia sido por causa de um rapto. "Tia Anastácia foi raptada pelo Minotauro!", disse a boneca para o espanto de todos. E a intuição dela se deveu ao fato de que naquele exato momento em que a doméstica desaparecera, a dona Benta estava exatamente contando a história do Rei Minos, da sua esposa e do Minotauro para a Emília, para o Pedrinho e para a Narizinho. Me encantei com essa história entre os meus oito e nove anos de idade, pois ela me parecia muito familiar. Era como se eu estivesse me lembrando de um fenômeno o qual  eu já sabia a muitos e muitos anos, mas que eu havia me esquecido dele por um breve tempo histórico. E eu penso que é por isso que eu estava aprendendo a respeito do tema com uma certa facilidade, pois era como se aquelas histórias já estivessem em mim. Ou seja, era como se elas fossem ideias perfeitas adormecidas na minha consciência, as quais foram despertadas por dois oráculos, o Monteiro Lobato e a dona Benta. E é incrível como até hoje, quando eu leio sobre a tradição grega através de especialistas como Nietzsche, Hegel ou Heidegger, parece que desde a muitos anos, passando inclusive pelo Sítio do Pica Pau Amarelo de Monteiro Lobato, eu na realidade, estou buscando nos lugares mais recônditos da minha consciência, aprender a respeito de algo que eu já soubera em passados remotos, mas me esqueci dessas informações com o tempo, até que me relembro quando ouço e aprendo a respeito das mesmas. O que me leva a crer que há uma relação muito intrínseca entre intuir, se esquecer e aprender. Mas como fica isso nessa geração atual, onde a função do verbo esquecer está sendo substituída pela disfunção do verbo deletar? será que é possível hoje exigirmos dos nossos jovens que eles aprendam através dos mesmos materiais intuitivos que nos foram apresentados como estudantes e aprendizes no passado? Será que aprender após se esquecer é o mesmo que aprender após deletar?

Uma das experiências mais marcantes que eu tive com um aluno em sala de aula, foi a alguns poucos anos atrás quando eu, já pela quinta aula consecutiva, falava com uma determinada turma a respeito da burguesia e do seu significado histórico. Derrepente, eu fui interrompido pela fúria de um aluno de aproximadamente uns vinte anos que me disse, "professor, o senhor vai ficar aí o tempo todo com esse papo de burguesia, burguesia, burguesia?"surpreso com a interrogação, mas por outro lado um pouco esperançoso, eu conclui o seguinte e o perguntei quase de maneira afirmativa, então quer dizer que você já entendeu o significado do que é a burguesia? Porém mais surpreso ainda eu fiquei quando ele me respondeu mais ou menos assim, "não, não é que eu tenha entendido, é que o senhor já está a semanas com esse papo de burguesia, burguesia, burguesia! Depois de refletir muito sobre esse episódio eu cheguei a algumas conclusões. O que também ocorre hoje é que o tempo do verbo esquecer que deixa os seus vestígios no subconsciente, no inconsciente e nos vários agregados psíquicos das nossas câmaras internas é um, mas o tempo do verbo deletar dos tempos de agora é outro, e ele pode ocorrer inclusive antes da internalização do saber, que vem a nós de forma intuitiva ou  consciente. Pois ao esquecermos, as informações ficam guardadas nos nossos vários agregados internos, mas ao deletarmos informações, guardamos o que nos é apresentado em que lugar? Pois quando o aluno me fez a pergunta impaciente sobre a minha insistência em falar a respeito da burguesia para que os alunos pudessem fixar melhor a matéria, eu estava no paradigma tradicional e analógico da intuição e da aprendizagem, que se esquece das coisas que são apresentadas à ela para depois nos lembrarmos das mesmas fixando_as à nossa mente como saber formal. Mas o aluno que fez essas colocações aparentemente absurdas estava em um outro tempo, ele esrava no tempo da informação que é deletada antes da fixação da aprendizagem tradicional para talvez jamais ser recuperada novamente pela memória em forma de saber. E isso hoje é um problema seríssimo do ponto de vista social e político, pois essa metodologia usada hoje por alguns homens públicos de darem sempre dois passos a frente e um para trás sucessivamente, não deixa de ser um investimento abusivo nessa nova fase do esquecimento crônico como condição humana aparentemente normal.

Por isso é que eu penso que é nesse lugar estranho onde os mais jovens, e até mesmo as pessoas mais velhos estão adentrando. É por isso que eu digo que é nesse espaço onde os indivíduos deletam informações para que elas jamais sejam recuperadas no futuro, que se encontra a angústia da professora Catiane e de muitos da nossa profissão. Pois a Catiane dizia para nós com um certo ar de desalento, "mas gente, eles fizeram os exercícios direitinho em sala de aula, eles participaram das aulas de maneira muito interessada, e eu fui para o a prova com a certeza absoluta de que tudo ocorreria muito bem, porque de fato eles demonstraram que aprenderam! Mas na hora de fazer a prova, a grande maioria não sabia nada, e muitos deles inclusive entregaram a prova em branco!" O problema é o seguinte penso eu, quando nós aprendemos alguma coisa, como eu já disse, depois que as informações nos são passadas, elas ficam resguardadas, segundo o que nos vem sendo informado desde Platão antes de Cristo e desde  Freud depois de Cristo, em câmaras internas que estão em nós. Mas em um momento oportuno, esses recônditos nos fornecem de volta tudo o que eles guardaram para que o conhecimento objetivo possa usufruir de todo o saber que fora guardado. Só que os alunos da Catiane, e talvez hoje, a maioria dos nossos estudantes, não estão mais no tempo do contato intuitivo com o saber, que é seguido pelo esquecimento, que guarda as informações nos lugares mais recôndidos da consciência, para finalmente recuperar o que está internamente armazenado em forma de saber. Os alunos da Catiane estão nesse tempo onde as pessoas aparentemente aprendem, e depois deletam as informações para nunca mais se lembrar delas. Ou seja, um dos problemas da aprendizagem na atualidade, é que ao substituirmos as funções do verbo esquecer pelas disfunções do verbo deletar, nos esquecemos de eaquecer, e desta maneira, ficamos sem parte considerável do material cognitivo e útil para a nossa aprendizagem, que é o esquecimento.

Eldon de Azevedo Rosamasson

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