CRÔNICA E FILOSOFIA: MORTE E POLÍTICA
Penso que todos nós deveríamos viver tendo sempre a certeza de que morreríamos no ano seguinte, salvo se o mesmo quase nunca ocorresse, pois imagino que isso promoveria um desejo encantador por cada ato da respiração, penso que isso valorizaria cada batida apaixonada do coração e teríamos um melhor senso de eternidade em cada lugar do tempos, que jamais poderiam ser desperdiçados. Penso também que seríamos como Aquiles, como Heitor e como os grandes heróis da areré guerreira, que tinham no ideal da bela morte os principais motivos para enxergar a vida como vida florescente e encantadora. Pois ao não temer a morte, grandes homens encerraram a vida de maneira resoluta e altiva para dar sentido aos seus mais altaneiros ideais. Marco Aurélio e Cleópatra o fizeram para eternizar o sei poder política e o amor que houve entre ambos. Sócrates se mostrou ética e moralmente seguro perante o seu adormecimento por cicuta, e deixou grandes exemplos que impactaram Platão, Xenofonte e os seus demais discípulos. Getúlio Vargas e etc, também fizeram o mesmo para dar sentido aos seus ideais maiores de glórias políticas. Mas o que significa essa postura social e política hoje diante da Pandemia do corona vírus, que leva muitos a uma certa acomodação psicológica perante a seguinte afirmação, "é assim mesmo, todo mundo morre um dia?" Ou seja, o que será que nos leva a demonstrar uma certa falta de temor diante da morte, mas sem nenhum ato virtuoso e heróico que dê sentido ético para a possibilidade de morrermos? Que fixação é essa por morrermos simplesmente como as bestas feras do campo, que alimentam o apetite dos abutres mais famintos? Será que nós chegamos ao momento máximo de reduzir a morte a nenhum significado para a vida? será mesmo que o único e verdadeiro motivo para essa vulgarização da morte como capital político é simplesmente por causa da economia e a necessidade dos trabalhadores, sobretudo dos trabalhadores mais carentes trabalharem?
De fato, somos uma civilização que aprendeu desde a formação do Biopoder do Estado Moderno, a descartar a proximidade da morte, afastando_a do nosso convívio. Com isso a tiramos das nossas mesas de juntar e a afastamos para os necrotérios públicos da cidade. Desta maneira, para os velórios convidamos alguns amigos mais íntimos que trazem o choro e a cachaça para confortar os corações feridos pela perda dos seus entes queridos. Sendo assim, optamos por enfrentar o dia final com uma espécie de embriaguez reconfortante, para que uma vez ébrios emocionalmente, possamos mortificar as pulsões de morte presentes em cada lembrança e em cada recordação trazida pela saudade, que é a presença da ausência. Essas lembrança são como se nós pudéssemos ressuscitar a vida na própria morte, afogando_a e embriagando_a com muitos significados, com muitas flores e com muitos copos de caipirinha. Mas eu percebo agora uma diferença bastante sutil na atitude histórica de desviar e ludibriar a dor da perda através de várias cerimônias. Pois eu noto uma tentativa política tácita de substituir as palavras de conforto que nos ajudam tanto a enfrentar esses dias mais difíceis, por uma espécie de amnésia política a respeito da morte como realidade atual trágica. Pois o que há hoje no país, é uma tentativa neoliberal de afastar o Estado e os cidadãos da responsabilidade para com a dor do outro, principalmente na sua relação com o que mais dói na vida, a perda de um ente querido. E agora com a Covid 19, são milhares e milhares de vítimas que a política oficial tenta transformar em amnésia militante. E por isso a frase, "todo mundo morre um dia."
O mito do Cristo ressureto é o nosso principal exemplo cultural de que existe um valor imaginário entre os povos de que viver é morrer. Mas penso que isso se mostra de maneira diferenciada em cada grupo, em cada povo, em cada cultura e em cada nação. Esse mito também demonstra que valorizar e celebrar a morte é uma maneira bastante comum das sociedades valorizarem a vida. Pois a vida é muito mais significativa quando ela se torna uma vida de excelência a ser festejada com a devida qualidade dentro do seu mundo. Desta maneira, vemos que quando essa qualidade na vida é menor em grupos humanos excluídos socialmente, nestes lugares ou países, a vida também costuma ser tratadas como algo de somenas importância. E quando a qualidade de vida é mais festejada, a vida se torna em média muito mais significativa. E consequentemente, a morte aparece relativamente como algo a ser celebrado com o seu devido tom fúnebre, cerimonial e festivo. Mas no mundo de hoje, considerando que tudo é medido em escala industrial, o mesmo ocorre com a vida e com a morte. Mas especialmente no Brasil de agora, ocorre um estranhíssimo processo que eu chamo carinhosamente de datenização da morte como entretenimento de final de tarde. E como a morte também virou entretenimento diário, por que não se ter a impressão de que o problema da Covid 19 não é tão grave assim porque "todo mundo morre um dia?"
Em uma certa oportunidade, convivi dividindo um pequeno apartamento com um amigo judeu, e em parte, pude entender um pouco, o porquê das nossas muitas piadinhas de mau gosto sobre a suposta mão fechada dos mesmos. Mas o que ocorre não é tão simples assim, é que uma pessoa que vivencia verdadeiramente uma cultura parecida com a história das tradições judaicas, sobretudo os mais tradicionais, entendem que quase tudo na vida é uma questão de segurança, de vida ou de morte, e a falta de um simples objeto, pode representar a morte em uma percepção muito mais aguçada que a nossa. Neste caso, um simples produto de limpeza pode representar segurança, pois em lugares ermos como em um campos de concentração por exemplo, o ambiente era totalmente sujo e insalubre. E isso ficou muito forte no imaginário desse povo. Da mesma maneira, um simples quitinete pode representar, não apenas um espaço de moradia, mas também um esconderijo seguro em caso de maiores intempéries e ataques inimigos. Outra coisa muitisimo curiosa, é que as festas dos judeus costumam ser bastante regadas com todas as iguarias da culinária do mundo e do Oriente Médio, pois ao compartilhar a comida com você, é como se eles estivessem compartilhando com o outro de um dos seus maiores valores a serem cultivados, a comida e a segurança alimentar, que também é caso de vida ou morte, dependendo das muitas ocasiões. Mas essa suposta incapacidade que eles têm de compartilhar de parte das suas heranças pecuniárias, penso eu que faça parte de uma ideia de que a economia é um fenômeno humano onde cada moeda representa segurança para com a vida. Neste caso, cada nota de dólar ou euro, cada barra de ouro, cada obra de arte do acervo, são como órgãos vitais do corpo, e cada moeda que cai no chão, seria como se elas fossem gotas de sangue que se perdem entre os poros da terra. Pois essa capacidade de celebrar a morte pelo fato de que a celebração da vida é importante, é algo que talvez esteja faltando entre nós, principalmente agora, razão pela qual talvez nós estejamos perdendo agora as nossas principais cerimônias de respeito mútuo para com as dores que sucedem a morte. E por isso a frase, "é assim mesmo, todo mundo morre um dia."
Nós brasileiros temos um jeito muitíssimo peculiar de lidarmos com as nossas pulsões de vida e de morte, porque somos um povo que de alguma maneira insiste em não ter passado, simplesmente porque nos enganaram dizendo pra gente, que nós somos um povo sempre muito simpático, sempre muito cordato e sempre muito hospitaleiro, e como nós nos esquecemos quase por completo de algumas das nossas origens bárbaras e sanguinária, nós temos um hábito de olhar para certas barbáries no nosso próprio dia a dia como se as mesmas não fossem bem uma propriedade nossa. Ou seja, é como se as mortes e as barbaridades nossas de cada dia fossem um grande necrotério a céu aberto que habita principalmente as zonas mais periféricas das nossas grandes cidades e acima de tudo das nossas maiores favelas. E dessa maneira, os nossos mortos já não habitam de jeito nenhum à nossa mesa de jantar como de costume, pois nós os afastamos de nós dentro da nossa própria arquitetura urbanística. Ou seja, os nossos amigos trouxeram a caipirinha para esse grande velório urbano e coletivo que nós criamos, e nós escolhemos permanecer embriagados para não enxergarmos o potencial das nossas reais e verdadeiras pulsões de morte, agora impulsionadas pela pandemia. Por isso a frase, "é assim mesmo, todo mundo morre um dia."
Eldon de Azevedo Rosamasson
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