CRÔNICA E FILOSOFIA: O PÚBLICO, O ÍNTIMO E O PRIVADO
As ações da Polícia, que prenderam hoje o ex motorista e asessor do então deputado Flávio Bolsonaro, Frabrício Queiróz, curiosamente na casa do principal advogado da família Bolsonaro, Frederick Wassef, demonstram um outro lado da moeda entre os vários esquemas de corrupção política que nós estamos tão acostumados a ver. Pois a corrupção de agentes do Estado costuma ser uma confusão histórica que corruptos e corruptores fazem entre o que é público e entre o que é privado. Mas a família Bolsonaro tem uma relação muito específica com as coisas ilícitas, pois a mesma não apenas confunda o público com o privado, mas também o privado com o íntimo.
Desde o século XlX com Emile Durkheim, o primeiro dos grandes cientistas sociais por excelência, nós nos acostumamos a tentar compreender a maneira como as sociedades se organizam a partir das suas principais instituições sociais. E a primeira de todas as instituição, que é apresentada a nós antes que a Escola nos mostre o mundo em várias das suas dimensões, é quase sempre a família. A família se faz presente no.mundo de duas maneiras, na sua privacidade e na sua intimidade. Na primeira estão as nossas relações exotéricas e interpessoais, que se encontram na vizinhança, que estão presentes nas nossas relações mais diversas de amizade, que estão nas aproximações com os nossos interesses pelo consumo e coisas do gênero. Mas na segunda, nas relações esotéricas e mais secretas está a intimidade, onde estão as nossas carícias mais íntimas, onde estão aquelas piadas que só são compreendidas no interior de cada núcleo familiar e onde estão os principais segredos históricos que são guardados a sete chaves dentro do interior de cada casebre, de cada apartamento de um, dois ou três quartos e no interior de cada grande mansão. E é na intimidade destas portas fechadas que se encontra a intimidade na política, que é onde a família Bolsonaro procura levar para a república e para a instância mais alta do poder, que é a a presidência da república, as idiossincrasias do seu núcleo familiar.
Uma outra característica que evidênciam o caráter íntimo em detrimento do valor do que é público e do que é privado neste governo, é a sua relação com a religião. Pois historicamente, os primeiros grupos sociais não faziam qualquer distinção entre o sagrado e o profano e entre o público e o privado. Desta maneira, os deuses faziam parte de todos os espaços da realidade das pessoas como um fenômeno estritamente tribal, étnico e familiar. Esse caráter privado e de origem na família estava em todas as formas de governância possível até meados dos séculos XVlll e XlX quando chegou a era das revoluções. E mesmo na formação das grandes monarquias que se formaram ao longo dos anos pré revolucionários, não houve claramente uma separação entre os direitos privados de quem governava e entre os interesse público que os governantes pudessem se submeter devido à superioridade das leis. Mas com a laicidade gradativa do Estado propostas pela República, o sentimento religioso passou a ser coisa estritamente de fórum íntimo, e não mais privado. Neste caso, se hoje temos uma relação necessária de companheirismo com a vizinhança ou com as pessoas do nossos condomínios, estamos no âmbito do privado. Se mantemos os melhores contatos como clientes que somos em uma realidade econômica e monetária de consumidores e vendedores responsáveis ou não, estamos nos espaços da vida privada. E se dentre muitos etcetera, procuramos ser o mais cordatos possível com aqueles que nos abordam ou que nós abordamos, estamos sim em um inquestionável plano da nossa vida privada. Mas quando eu digo que eu escolho ou sou escolhido por um Deus, por alguns deuses ou por certos santos da minha devoção, é dentro das câmaras mais internas na intimidade que eu me encontro. Pois a partir do momento que eu vivo em um Estado laico, crer ou não crer em Deus e ser ou não ser devoto de todos os demônios que habitam as trevas, é uma questão de íntima e não uma questão de caráter privado ou público. E quando o governo Bolsonaro insiste na propaganda "Brasil acima de todo e Deus acima de todos", ele está querendo impor a cada cidadão, não um valor privado como convencimento de uma ética superior, mas o governo, em mais uma oportunidade, impõe com isso não necessariamente o que é privado no lugar do que é público, mas também o que é íntimo no lugar do que é privado.
A política é, desde quando os gregos a inventaram, a dimensão pública da vida em detrimento do lugar privado. E foi com esse caráter que a república foi vivenciada nas suas duas grandes fases, no direito romano do passado e nos movimentos republicanos que marcam o Estado Moderno, principalmente a partir da Revolução Americana, e acima de tudo, a partir da Revolução Francesa. Mas tendo em vista esse caráter público do Estado de hoje, como se dá a corrupção clássica que nos é tão familiar como a bolsonarista? Essa tal corrupção clássica, se dá da seguinte maneira; ela ocorre geralmente quando os nossos interesses privados ocupam os interesses do que é estritamente público e do interesse de todos. Mas o que ocorre no governo Bolsonaro é que da mesma maneira como a corrupção clássica procura maneiras de substituir o público pelo privado, a corrupção bolsonarista procura a substituição do que é público e do que é privado pelo amor que é íntimo e estritamente familiar. A ponto da imprensa relatar com frequência, que até o filho do presidente, o vereador Eduardo Bolsonaro, costuma despachar no Palácio do Planalto. Ou seja, â sua função pública como vereador compete atuações no município do Rio de Janeiro, mas sendo assim, por que então ele fica cumprindo funções privadas e de intimidade com o pai em repartições públicas federais que não são destinadas à sua gestão segundo informam os órgãos de imprensa? será mais uma evidência do caráter íntimo em detrimento do privado no governo Bolsonaro?
Segundo Jesus de Nazaré, "a boca fala do que está cheio o coração." Se houver algum tipo de verdade nessa máxima, é no mínimo curioso como o presidente Bolsonaro seja especialista em usar metáforas da privacidade e da intimidade como os termos namoro, noivado, casamento e abraço hétero para exemplificar as suas relações políticas de caráter público. Não vou falar que isso é alguma forma de Freud explica, pois neste caso não é Freud que explica nada, sou eu que dúvido, e se duvido desconfio e logo insisto.
Os esquemas de corrupção mais conhecidos na História do Brasil, e eu vou usar aqui como exemploo o que ocorreu durante o governo Collor e durante a gestão petista também tiveram as suas muitas contradições quanto a lisura da gestão pública. Porém não no sentido de que o que é íntimo tenha substituído o lugar do que é privado como acontece agora. Rememorando, Collor caiu por causa das descobertas de uma relação indecorosa com o seu tesoureiro de campanha, Paulo César Farias, o qual o presidente dissera não conhecer. Mas a prova de que PC Farias presenteara a família do presidente com um Fiat Elba, revelou um suposto esquema de corrupção envolvendo a presidência da república e o seu ex tesoureiro da campanha. Mas o esquema só veio a tona porque o irmão do presidente, Pedro Collor, não participava diretamente dos interesses lícitos ou ilícitos do governo. Ou seja, até o ponto onde teria havido corrupção, a mesma teve um caráter privado em detrimento do que é público, mas por não ser uma ocupação da familia do presidente no Palácio do Planalto, não havia a substituição dos interesses do que é privado pelos interesses do que é íntimos na gestão pública como ocorre agora.
Algo análogo do que ocorrera no governo Collor acontecera também nos governos do PT, pois por mais que tenha havido, e houve mesmo, muitíssimos esquemas de corrupção muito próximos à presidente da república, havia um distanciamento mínimo entre a família do presidente e o Palácio do Planalto. É claro que existiram e existem ainda várias investigações em torno de supostas atividades ilícitas em torno do tal Lulinha, o filho do Lula. Mas nada semelhante à essa atual transformação do público em íntimo como está havendo agora. Pois anteriormente, dificilmente algum parente do presidente da república aparecia nos holofotes com tanta frequência. Aliás, acho que é a primeira vez que a presidência da república é ocupada dessa maneira, como se fosse o clã de um único núcleo familiar.
Quando um governo corrupto substitui as suas atividades privadas ilícitas por atividades ilícitas íntimas como agora, eu penso que um problema muito sério pode ser gerado nessas relações como o possível agravante. Organização criminosas tradicionais como a máfia italiana e até mesmo as muitas contradições que ocorreram dentro do PT, demoram muitos anos para caminhar pelos bastidores do poder com o fim de ampliar o alcance dos seus tentáculos. Mas da maneira como o aparente esquema de corrupção do governo Bolsonaro acontece em um espaço muitíssimo restrito de intimidades, há uma dificuldade muito grande na ampliação dos tentáculos da corrupção e da própria governabilidade. Bolsonaro é extremamente desconfiado e ciumento. Ele simplesmente projeta em todas as pessoas um dos traços mais marcantes da sua personalidade, a de ser um traidor no dia seguinte da fidelidade que é prometida hoje. E como o medo de ser traído vem de todos os lados e os laços de amizade e de fidelidade são muito estreitos e não dá pra confiar em quase ninguém, faltou até lugares menos óbvios para esconder Fábrico Queiróz, que estava exatamente na casa de um dos homens fortes da tropa de choque do presidente, Frederick Wassef, o principal advogado da família Bolsonaro. Pois como esse governo substituiu a privacidade política da corrupção pela intimidade familiar na gestão corrupta do Estado, na mente do Bolsonaro só existe espaço para três instituições no seu projeto de poder, o seu ego, a sua família e os seus companheiros da milícia.
Eldon de Azevedo Rosamasson
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