CRÔNICA E FILOSOFIA: AMAI AO DISTANTE COMO A TI MESMO

Esses dias de pandemia e de distanciamento social através do mundo, tem me feito fazer algumas reflexões sobre o papel da  distância como uma das possibilidades para o amor. Pois quase sempre nós falamos dos sentimentos amorosos como símbolo de proximidade e dos nossos desamores como sinônimo de distanciamento. Pois na Bíblia está escrito: "disse  Jesus, amai ao próximo como a ti mesmo." Eu porém, Eldon Rosamasson vos digo, amai ao distante como a ti mesmo.

O amor como força vital é um fenômeno que costuma fugir à nossa plena capacidade de articulação e controle. Razão pela qual Medéia ao assassinar seus filhos, por ter sido preterida por Jasão, fugiu para lugares distantes. Razão através da qual Pedro se embaraçou todo ao ouvir do Cristo a seguinte pergunta: Pedro, tu me amas? E razão pela qual Euclides da Cunha foi letalmente ferido ao não conseguir alvejar com precisão a Bentinho, o amante odioso da sua tão adorada Capitu.

Historicamente também é muito complicado controlar as forças do amor, que insistem em desafiar os simplismos da nossa percepção e a pressa da nossa linguagem. Pois quase sempre o que nós resumimos como love, como amore ou simplesmente como amor, também pode ser denominado como baby, como querida ou como chery. Mas é sempre ele, o tão adorável, o tão surpreendente e o tão inquietante amor,  sempre disposto a embalar os nossos sonhos, sempre pronto a exalar o elixir das mais diversas fragrâncias renovadoras de luzes que se apagam, de olhos que se fecham, de lábios que se tocam e de pernas que se perdem sob os frutos sagrados de todos os pontos G.

O amor que costuma desafiar os simplismos da nossa linguagem e os lugares invioláveis da nossa temperança, também desafia a História a rever os seus conceitos em cada lugar do tempo. Pois em meio à pluralidade do agora, os oráculos do amor tem tanta gente, tem tantos grupos e tem tantos partidos e tantas facções para orientar, que mesmo sendo o mais sábio de todos os sentimentos na tradição, ele se multiplicou e se distanciou demasiadamente no mundo de agora. Neste caso, são tantas pessoas que ele tem para salvaguardar debaixo das suas asas generosas, que o amor ao próximo tem se tornado praticamente obsoleto na maioria das vezes. Pois o que está em vigor na geopolítica dos dias de hoje é o amor ao distante como a si mesmo, e não somente o amor ao próximo como a si mesmo. Razão pela qual eu insto, amai ao distante como a ti mesmo, assim como tu amas aos que estão por perto e que te são tão familiares.

Jesus pregou em uma época em que os paradigmas da proximidade ainda superava o paradigma do distanciamento. Evidentemente eu não estou me referindo somente à proximidade e a distância geográfica e quantitativa. Mas também à proximidade e o distanciamento sentimental e qualitativo, que se constrói a partir das mais variadas formas históricas de percebermos o outro como objeto do nosso amor. Pois até ele, o senhor absoluto de todos os sentimentos é sujeito aos tempos e à época em que ele aparece à limitada consciência humana.

Até os dias do discurso do Cristo, e de lá pra cá, até a instauração da era moderna, pós Industrial e pós revolucionária, as narrativas tinham como constante exemplo a família, uma vez que as instituições sociais viam nela o seu maior espelho. Isso dava à maioria esmagadora dos povos, um senso de proximidade qualitativa que não necessariamente se extinguia com o distanciamento geográfico. Neste caso, o amor ao próximo como a ti mesmo foi falado com o pressuposto da proximidade já constituída em meio a um símbolo dentre as instituições sociais, a família.

Mas a modernidade foi fortemente alcançada por três instituições revolucionárias, a Ciência, o Estado e a Indústria. A Ciência gerou a tecnologia e a divisão gradativa das atividades humanas em diversos fragmentos do saber. A Indústria se beneficiou dessa nova etapa da tecnologia para proporcionar a divisão social do trabalho. E para mediar a complexa relação social da vida moderna, o Estado investiu_ se de um novo desafio, o desafio de ser o mediador de um fenômeno crescente, que é o distanciamento qualitativo entre os  seres humanos, uma vez que a partir dessas novas configurações sociais, o modelo de vida em sociedade já não é mais baseado somente nas proximidades baseadas da proximidades da família, mas é a tecnologia da informação, é o formador de opinião, é o homem público, é o escritor, é o artista, é o atleta e etc que criam as muitas possibilidades de identificação entre os seres humanos. Ou seja, agora as pessoas com quem eu não convivo de perto, e que por isso eu preciso abstrai_las na distância, também possibilitam as pulsões amorosas que existem entre a gente. E dentro deste modelo ético do distanciamento, como amar ao distante como a nós mesmo, assim como eu amo aos que estão próximos a mim, se as configurações da vida pós moderna, e sobretudo da vida em rede, nos conduz a muitos distanciamentos e proximidades que são muito mais virtuais que reais? Ou seja, nos dias de hoje, onde a tecnologia aparentemente nos aproxima, o que é realmente um distanciamento e o que é de fato uma aproximação? Pois a vida em rede traz por definição uma impressão de familiaridade entre os indivíduos que quase sempre não é real. Ou melhor, há uma infinita oferta aparente de proximidade quantitativa, que nem por isso nos aproxima qualitativamente. Neste caso, mesmo estando globalmente próximos por impressão digital, na maioria das vezes, na nossa condição humana de hoje, estamos distantes por definição qualitativa. Sendo assim, como amar ao próximo, ou melhor, como amar ao distante, que parece que está próximo, como a si mesmo?

Esse desafio foi por muitas vezes testado na história moderna e recente. Não nos esqueçamos que já escravizados pessoas e alienamos a outras do nosso convívio pela simples hipótese de acharmos que não tratavam_se de seres humanos, por serem negros ou índios. Já produzimos guerras absurdas pela simples hipótese da inferioridade de uma raça. E hoje estamos diante de mais um novo desafio, as questões humanitária, que também se apresentam no fenômeno da imigração, juntamente com outros muitos desafios do tipo, como amar ao mussulmano no distanciamento da sua crença? Como amar a família homoafetiva no distanciamento do seu pertencimento? Como amar os de esquerda ou os de direita no distanciamento da sua militância política? Como amar à comunidade LGBT no distanciamento da sua referência sexual? Pois a própria distância quantitativa que o distanciamento social propõe nessa época de pandemia, é também capaz de potencializar distanciamentos  qualitativos através da falta da empatia. Afinal de contas já produzimos muitas pérolas e atitudes curiosas com a emergência do distanciamento nesses últimos dias de semi_confinamento. Já  fomos capazes de dizer simplesmente um "todo mundo morre um dia" mesmo perante às milhares de mortes que estão ocorrendo no Brasil e no mundo. Já dizemos coisas do tipo "eu não sou coveiro" mesmo perante às nossas responsabilidades de cidadãos no cuidado de uns para com o outros. Já arrancamos brutalmente as cruzes de uma praia em homenagem à pessoas que morreram durante a pandemia falando que aquilo era uma maneira de criar pânico em meio à população. Já insistimos em dizer as vezes que mesmo se aproximando de cem mil mortos, que os nossos temores é pura histeria. E etc. Ou seja, temos visto um distanciamento qualitativo na nossa capacidade de amar e respeitar a dor do outro hoje,  pelo fato também de  que a própria virtualidade das nossas relações criou também a virtualidade de muitas dores que se encontram próximas dos nossos olhos através da digitação, mas que se distânciam a cada dia por intermédio da falta de empatia que esses fenômenos digitais podem causar. Neste caso, os mais duros dramas humanos podem se tornar agora um grande espetáculo cujo a realidade nós manipulamos através da digitação e do ckik, como se todos os nossos dramas pudessem ser representados, vistos e manipulados na digitação de um smartphone e de uma frase de efeito que parece ser a solução para todos os nossos problemas.

O próprio Jesus de Nazaré e os Evangelhos falavam do amor como sinônimo de proximidade. Pois além da celebre frase do Cristo que nós já citamos, o Livro de Hebreus diz " não deixe de congregar como é costume de alguns." E como seria esse versículo hoje, será que o escritor aos Hebreus diria deixem de congregar por amor para que não haja aglomeração? A pergunta é embaraçosa por trazer o desafio do amor, que hoje tem que amar, mas que também tem que se afastar dos objetos humanos que quem ama. Isso é na realidade mais uma etapa de um processo longo que nós não temos ainda muita clareza de como ficará na fase pós Pandemia. Pois desde que nós passamos gradativamente da era analógica  para e era digital, que as nossas aproximações virtuais vêm criando uma falsa familiaridade com as coisas que nós não conhecemos, mas que nos trazem uma falsa sensação de familiaridade por causa das impressões de familiaridade em um mundo que parece que está todo contido nos chips dos nossos smartphones. É dentro deste contesto de proximidade virtual e de distanciamento qualitativo que eu penso que seja necessário fazermos agora uma mais nova pergunta, como amar ao distante como a si mesmo, tendo agora a falsa impressão de que todos os que estão longe da gente estão por perto só porque agora quase tudo ou quase todos estão acessíveis a nós através dos nossos chips, telas e teclados? Ou seja, como amar os que estão assim tão distantes como a nós mesmos?

Eldon de Azevedo Rosamasson

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