CRÔNICA E FILOSOFIA: O CONTESTO POLÍTICO DAS PALAVRAS

A postura da médica Nice Iamaguchi,  comparando cuidados excessivos para com a Pandemia do Novo Corona Vírus com o medo imposto pelos nazistas ao povo alemão para oprimir os judeus, e toda polêmica que isso gerou, que redundou inclusive na própria demissão da doutora do Hospital Albert Einstein, me faz pensar na importância que cada declaração representa em cada  contesto. E essa reflexão me leva a fazer a seguinte pergunta, o que torna uma frase ou mesmo uma única palavra oportuna ou infeliz perante a opinião pública, tendo em vista as tenções sociais vividas em cada momento da história? 

Eu e o meu irmão, juntamente com alguns amigos, tínhamos o hábito de brincar uns com os outros da seguinte maneira, quando algum de nós fazia alguma coisa aparentemente errada, pois falávamos assim dentre risos e gargalhadas, "só podia ser preto mesmo", ou "para com isso seu macaco" e etc. E por que essas coisas geravam tanto riso entre a gente apesar da brincadeira ser de aparente mau gosto? Simplesmente porque estávamos entre pessoas negras,  que se conhecem, que se gostam e que se respeitam. Neste caso, quando brincávamos assim, o contexto dessas brincadeiras entre a gente era bem outro, e não tinha qualquer relação com o racismo, pois entre nós, estávamos debochando das pessoas preconceituos, e não nos discriminando. É dentro deste conceito que eu particularmente,  não divulgaria a princípio aquela tal gravação onde o jornalista William Waack apareceu dizendo a um colega de profissão uma frase do tipo "só podia ser preto mesmo", pois eu não conheço o senhor William Waack pessoalmente, e por isso ao interpretar o que ele falou, eu me lembro das "zoações" entre eu, meu irmão e os nossos amigos. Por isso eu faço a seguinte pergunta, será que o seu William Waack não estaria também debochando do racismo e dos próprios racistas com um amigo como eu já fiz tantas e tantas vezes? Até porque o seu colega jornalista que estava ao lado dele também riu da piada de aparente mau gosto. Muito embora  eu reconheça que por ele não ser negro e não pertencer a nenhum grupo social aparentemente discriminado, fica muito difícil ele convercer a opinião pública que não fez uma declaração no mínimo preconceituosa. Evidentemente que se uma pessoa que a gente não conhecesse direito e que não participasse do significado histórico que essas chocarrices tinham entre a gente, fizesse a mesma brincadeira entre nós, seria ofensivo, simplesmente porque se o indivíduo não conhecesse a gente e brincasse assim, as suas frases e palavras estariam fora do contrato lúdico das nossas "zoações" e do respeito e amizade que haviam entre a gente. E no caso do William Waack, ele não se dirigiu ofensivamente à ninguém. Ele disse o que disse em uma relação de intimidade com alguém, que era um dos seus colegas jornalista, que talvez por ter ficado meio sem graça, também sorriu com o que o Waack falou. Muito embora eu reconheça que tudo o que nós falamos e fazemos publicamente está sujeito à uma determinada publicidade em potencial. Mas quando uma declaração é feita dessa maneira, salvo se a mesma fosse para a elucidação de algo como um crime por exemplo, a princípio eu não divulgaria, pois acho que todos têm o direito de falar uma grande bobagem de vez em quando, desde que a mesma não atinja diretamente a outrens ou seja direcionada aos mesmos. Penso que manchar uma carreira tão brilhantemente construída devido a uma frase infeliz que não foi diretamente dirigida aos ofendidos em potencial, é um tanto quanto exagerado. Eu mesmo já falei e fiz muitas coisas que depois que eu as realizei na prática eu disse para a minha própria consciência, ainda bem que ninguém filmou.

O mesmo acontece quando no seu ambiente, os gays tratam um ao outro de viado pra lá viado pra cá. Pois assim como a palavra preto e macaco são apenas palavras, o termo viado em si mesmo, é apenas um dos membros da ortografia com os seus próprios caracteres, e não necessariamente sinônimos de ofensa para todo sempre. Mas será que nesse caso da doutora Nice Iamaguchi houve inocência nas suas palavras e a Comunidade Judaica estaria simplismente praticando o tal mi mi mi diante das declarações da médica? em que contexto histórico estão as declarações da doutora?

Nice Iamaguchi tem demonstrado a muito tempo uma grande afinidade com o jeito de fazer política do governo Bolsonaro. Inclusive já chegou a ser cotada para a própria pasta da saúde nesse governo. E como o presidente tem sido um eterno negacionistas em relação à gravidade do problema de saúde pública maior de hoje, que é essa pandemia, a declaração de Iamaguchi foi feita dentro de um subcontrato negações do óbvio onde os ânimos estão muito acirrados. Afinal de contas, o nosso platô de cerca de mil mortes por dia está demorando por demais nos mesmos patamares.  E se a declaração da doutora não foi com intenção dolosa, o que eu duvido, ela foi no mínimo bastante infeliz. Mas não pelas palavras e pelas suas frases em si, mas por causa do contexto onde elas foram pronunciadas. Principalmente porque no mesmo contesto está o tão polêmico uso da Cloroquina, que a Comunidade Científica Internacional já descartou, que a OMS já refutou completamente, e que praticamente todos os países que têm uma política pública minimamente responsável fez o mesmo.  Mas a doutora Iamaguchi continua teimando em usar essa droga, que segundo a Ciência, não tem nenhuma eficácia comprovada, e ainda pode agravar os quadros de Corona Vírus nos pacientes.

Nice Iamaguchi tocou também em uma área muito delicada, que é o sentimento de um povo muito específico, o povo judeu, que com algumas muitas justiças, não gosta de ver a sua história se misturar vulgar e gratuitamente com a historicidade de outros fenômenos do tempo, mesmo que tais fenômenos sejam histórias de relatos que têm sofrimentos análogos às muitas dores que a nação israelita passou. E como o povo judeu conseguiu fazer alianças muito importantes no mundo moderno, principalmente com as maiores potências políticas e econômicas do mundo, eles lograram até agora uma grande influência geopolítica também no Brasil. E qualquer fala em relação às feridas históricas desse povo é um campo bastante minado. Por exemplo, toda essa galerinha que vive repetindo em prosa e verso que os negros, que os gays, que as mulheres e etc estão de mi mi mi por trazer sempre à memória às suas causas, jamais ousam dizer que os judeus também estão de mi mi mi por não permitir que as pessoas se esqueçam dos seus dramas durante a história. Principalmente do Holocausto. E um exemplo disso maior ainda é o presidente Bolsonaro, pois quando ele fala que nós negros temos que esquecer os nossos sofrimentos do passado em relação à escravidão, que fundamenta o nosso racismo estrutural até o presente momento, jamais o mesmo diz que os judeus têm que olvidar por completo as suas desventuras históricas e fechar todos os museus do holocausto que se espalham pelo mundo. Ou seja, as frases e as palavras da médica Nice Descuidada Iamaguchi, têm todo esse contesto a favor da indignação dos judeus e contra ela. 

Eu sinceramente, não vi muitos erros de lógica e de metodologia no que Iamaguchi falou, pois realmente, o medo é um dos grandes catalisadores da submissão passiva e incontesti das pessoas, e pode sim ser utilizado como plataforma política de todos os  extremismos, tanto a direita como a esquerda. Mas repito, o problema não foi as palavras e as falas da médica, o problema todo está no seu contesto. E foi o nosso contesto histórico que tornou a frase da doutora Nice Iamaguchi uma declaração muito infeliz, muito embora o que ela tenha falado faça algum sentido. Mas mesmo uma frase que tenha todos os sentido da lógica e da analogia, se for utilizada para a defesa de um governo que se esforça em dizer e em fazer coisas sem nenhum sentido, a própria declaração, mesmo batizada por uma racionalidade mínima, pode estar distorcida por um pensamento enviesado que vem desde sua base. E um pensamento enviesado, que se distorce desde os seus fundamentos, pode corromper o próprio sentido das palavras que aparentemente estariam corretas. Pois não são as frases e as palavras que orientam a sua racionalidade e a sua coerência, mas sim os seus contestos históricos.

Eldon de Azevedo Rosamasson

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