CRÔNICA E FILOSOFIA: DIREITO À AMNÉSIA
Certamente nós vivemos hoje na modernidade, na pós modernidade ou na sociedade liquida
se preferirem, uma relação muito diferente para com a memoria, pois não fazemos mais como os primeiros grupos sociais, que marcavam nos seus corpos os símbolos das suas relações com o território e com a natureza. Não fazemos mais como o despotismo, que demarcava no corpo do déspota todas as suas escalas e medidas de valor. Mas agora, principalmente nessa nova fase do Capitalismo, demarcamos nos corpos da rede, todas a dívidas bancárias que temos para com a existência por termos cometido um primeiro pecado original, ter nascido. Desta maneira, é na manipulação dessa grande rede de informações que nós estabelecemos relações codificadas com as nossas memória e com os nossos esquecimentos sobre os dados que ficam armazenados na consciência.
Diante das possibilidades que temos hoje de jamais sermos esquecidos por uma quantidade infinitesimal de pessoas, há quem já pense até no direito ao esquecimento, o qual provocaria assim uma amnésia coletiva programada diante de fatos os quais o indivíduo se sente no direito de não ser mais importunado pela memória coletiva, pois uma das contradições do aceleracionismo digital do Capitalismo de agora é que a velocidade das informações têm a incrível capacidade de estabelecer pós verdades éticas e morais sobre a privacidade dos indivíduos. Ou seja, quando um cidadão cai na rede agora, ele imediatamente se transforma em um peixe a ser impiedosamente devorado pela verdade dos algoritmos, que vai associá_lo às principais palavras destinadas à ele. Razão pela qual nesses dias há tantos investimentos em se dizer que um desafeto não passa de um pedófilo, estuprador ou abusador por exemplo, pois como se sabe que há uma aversão quase automática da sociedade em relação à essas práticas, desafetos e mais desafetos creditam cada vez mais à velocidade da competência burra das redes sociais a destruição da reputação dos seus inimigos políticos, condenado_os ao direto de jamais ser esquecido.
Poucas coisas me parecem um comportamento tão novo como essa atual construção de estilo de vida onde nós temos a capacidade de manipular e digitar a lembrança e a amnésia através do verbo deletar, pois anteriormente, a amnésia se encontrava sobretudo dentro das esferas das limitações humanas, e ainda podia contar com o respaldo do chamado subconsciente, do denominado inconsciente e até das câmaras mais escuras da consciência para a construção de muitos caminhos terapêuticos em cada aprendizagem. Mas será que a manipulação da lembrança e da amnésia é hoje algum tipo de novo mau estar da civilização?
Eu percebo inclusive que nos dias de hoje, os nossos processos de relação para com a memória e com todos os seus jogos de lembrança e esquecimento, não apenas se vêem diante de fenômenos de esquecimento sobre as coisas do passado, mas agora, nós nos damos ao luxo de praticarmos também o que eu chamo carinhosamente de amnésia simultânea, que devido à hipervelocidade das informações, ocorre no próprio momento presente no qual a informação é produzida. Um exemplo muito claro disso ocorreu na época do governo Lula, onde quando foi oportuno se esquecer dos desmandos do Mensalão, nós fomos capazes sim de produzir uma amnésia simultânea, que supostamente perdoava o PT por várias razões políticas e econômicas. Mas em um momento oportuno, todo o ódio represado para com o partido foi trazido à tona com o seu devido direito de talvez jamais ser esquecido. E agora, mais uma vez na História, nós estamos vivenciando um momento de claríssima amnésia seletiva de ódio represado, a exemplo do que ocorreu na época do PT, uma vez que também por razões políticas e econômicas, nós estamos represando as nossas indignações para com o governo Bolsonaro e com todo o seu descaso com cerca de 120 mil mortos por Covid 19. Ou seja, mais uma vez estamos digitando formas de esquecimento simultâneo para com um governo por razões de interesses, principalmente em relação à pauta econômica do ministro Paulo Guedes. Mas com certeza em um momento oportuno, essa indignação e esse ódio represado, que está digitando essa amnésia simultânea sobre a gravidade do nosso atual problema de saúde pública, terá que vir a tona, e só Deus sabe os seus resultados.
O maior elogio que eu já ouvi de um aluno foi dito por um adolescente entre os seus 15 e 17 anos aproximadamente, o qual me surpreendeu com a seguinte frase: eu gosto da aula dele, parece uma terapia. E de fato é nisso que deve constituir_se, penso eu, o processo de ensino aprendizagem, em uma terapia e autoconhecimento, pois eu asseguro que nada seja mais desterritorializante que todo esse nosso processo líquido de vida vivida em rede onde nós sempre caímos na mesma mas deixamos de habitar nela, e onde nós digitamos as nossas lembranças e esquecimentos a cada dia como se todos eles fossem grandes redes de informações com todos os seus mais diversos interesses entrelaçados na Net. Mas uma boa terapia é um diálogo profundo com as câmaras mais escuras da nossa consciência no qual nós nos lembramos de eventos registrados no interior da nossa individualidade segundo Freud, no inconsciente coletivo segundo Jung ou em xacras do corpo segundo Reiki. Mas como pensar e realizar uma pedagogia terapêutica de autoconhecimento se atualmente nós temos essa estranhíssima capacidade de manipular a lembrança e o esquecimento em "processos esquizos" de hiperprodução e de manipular da amnésia através de um novo verbo, o verbo deletar? Pois anteriormente, a terapia da aprendizagem se realizava muito maisem uma experiência de autoconhecimento, que recuperava fenômenos esquecidos onde os mesmos limitavam_se à simplicidade da condição humana. Mas o que devemos fazer agora para realizarmos uma ação pedagógica de caráter terapêutico mediante a esse novo homem que manipula a lembrança e o esquecimento de acordo com a dança da construção de algoritmos? o que devemos fazer agora mediante a esse novo homem que manipula o amnésia através de um novo verbo, o verbo deletar?
De fato, cada vez que inventamos uma nova tecnologia é porque nós inventamos juntamente com ela um novo homem. E dialogar com esse novo homem que posta e apaga lembranças e esquecimentos através dos verbos digitar e deletar é um desafio que se faz presente, pois isso é novo para nós educadores que vivenciamos o dia a dia da docência e necessitamos realizar práticas pedagógicas que jamais completar_se_ão com sucesso se elas não consagrarem_se finalmente como uma terapia de autoconhecimento individual e de pertencimento. Pois se não nos encontramos com as condições humanas que hoje promovem essa atual digitação da lembrança e do esquecimento, nós vamos perder espaços em meio a esse novo cidadão que aprendeu a digitalizar a própria lembrança, a sua amnésia e de outrens através do verbo digitar e do verbo deletar.
Penso que essa seja uma das razões pelas quais as vezes nós professores, que ainda cultivamos as nossas estantes de livros, que ainda gostamos das grandes enciclopédias e que ainda amamos as nossas pequenas bibliotecas, somos tão poucos compreendidos por essa nova geração da amnésia simultânea, pois a experiência terapêutica da aprendizagem parece encontrar hoje muito pouco respaldo diante desse novo homem, desse novo homem que não apenas se esquece das coisas para depois reeencontrar_se com elas, mas desse novo homem que manipula e digitaliza o direito à lembrança e o direto à amnésia para também transformá_los em ativo político e econômico. Maa quando essa nova fase de amnésia simultânea passar e nós percebermos o que está de fato ocorrendo no Brasil de hoje com o problema da Covid 19, com certeza, saberemos encontrar os devidos responsáveis pelo que está acontecendo. Principalmente os que já tomaram consciência da gravidade do problema, pois neste caso em específico, eu não farei uso do direito à amnésia neste caso, e eu espero que o presidente Bolsonaro responda por ele, não apenas politicamente, mas que ele responda também no tribunal de Haia por crimes contra a humanidade.
Eldon de Azevedo Rosamasson
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