CRÔNICA E FILOSOFIA: NÃO TENHA FILHOS
Era uma vez em um verão na Palestina, nesse dia, quando conhecemos o menino Jesus, quando os pastores estavam rejubilosos no campo e os anjos cantavam "Hosanas nas maiores alturas", estranhamente começamos a perder a imortalidade. Evidentemente que não é a imortalidade proposta por uma vida eterna nos céus que teríamos perdido, mas nesse dia, perdemos sim grande parte da nossa imortalidade como perpetuação no tempo, perdemos a nossa imortalidade como perpetuação na natureza, perdemos a nossa imortalidade como perpetuação na História, e acima de tudo, perdemos a nossa imortalidade como perpetuação na memória.
Os nossos antepassados humanos, sobretudo os mais familiarizados com as nossas matrizes judaicas, com as matrizes de origem grega que nós temos e com as matrizes dos nativos da África ocidental que aqui chegaram, de fato conheceram vários e vários conceitos de imortalidade como herança patriarcal, antes mesmo do cristianismo transferi_los para o seu proselitismo. Pois quando Abraão pretendia ser o pai de uma numerosa nação, o mesmo pretendia eternizar_se na memória das gerações futuras. Razão pela qual na tradição judaica clássica, uma mulher que não pudesse ter filhos era tão vilipendiada, pois não podendo gerar descendência, a mesma não poderia jamais dar sentido à imortalidade do nome do marido na memória das gerações futuras.
Os gregos por sua vez, esperavam que com a morte, o nome de um homem livre permanecesse resguardado na presença de Mnemosine. Desta maneira, a deusa da memória faria com que o mesmo fosse celebrado através dos tempos. E uma vez eternizado no porvir, ele ficaria tão perpétuo nos dias perenes do futuros como o é a natureza. Isto é, permanecendo para sempre junto à consciência das futuras gerações.
Os nativos do continente africano ocidental, que para cá foram deportados, também trouxeram os seus conceitos de imortalidade para o cativeiro. Ou seja, para eles, era através da perpetuidade na diversidade da natureza que os seus antepassados permaneciam presentes em meio às suas crenças e valores. E sendo assim, eles permaneciam imortais na memória coletiva das gerações.
Porém um dia tivemos contato com o platonismo, que para Nietzsche se trata de uma espécie de cristianismo antes de Cristo, parafraseando o que ele mesmo dizia, pois Platão insistia que tudo o que nós vivenciamos no mundo sensível é falso, transitório e apenas a sombra do real. Neste caso, o ser de fato só poderia ser acessado através do mundo suprasensível das idéias perfeitas, que seria puramente mental e suprasensível.
Os chamados pais da Igreja se apropriaram muitíssimo dos conceitos platônicos, e a imortalidade, que outrora fora um conceito que não se divorciava da terra, na Patrística foi também separada da mesma, fazendo com que nós perdêssemos definitivamente a imortalidade da vida real, agora transferida para o céu, para o paraíso e para mundo suprasensível.
As conclusões acima não teriam nenhuma importância se os seus resultados sociopolíticos não fossem tão observáveis e também danosos em muitas oportunidades, pois a conquista da modernidade resultou também na conquista de um estilo de vida que procura nos alienar da morte como se a mesma fosse a real perda da vida, uma vez que a vida apressada da modernidade também fez com que nós nos desinteressássemos pela memória e pela ética da imortalidade póstuma.
A Revolução Industrial com todos os seus afluentes revolucionários, a Revolução Cibernética e a Revolução Digital, juntamente com todas as suas relações de cronometragem do tempo, estabeleceu a máxima de que os dias de hoje não são mais lugares onde os homens perpetuam_se para sempre na memória e na imortalidade, pois hoje nós vemos o tempo como uma espécie de capital produtivo que se finda com os dias da vida de cada um. Por isso a frase "tempo é dinheiro." E o dinheiro é finito para a maioria esmagadora dos seres humanos. Ou seja, nós hoje passamos a viver muito apressados, e isso é como se a proximidade iminente da morte representasse para nós uma espécie de perda imortal do tempo. E desta maneira, como nós vamos viver o sentido de imortalidade social e política no mundo de agora, sobretudo em um país como o Brasil, onde os nossos compromissos com a imortalidade, leia_se, com as gerações futuras, são sempre muito instáveis? E principalmente agora com a depredação de muitas das nossas instituições da memória? Ou seja, até que ponto a nossa geração pretende plantar o melhor no tempo presente para tentar permanecer imortal nas gerações futuras, mesmo correndo o risco de jamais se beneficiar dos frutos do seu plantio em um Brasil onde é quase certo o risco de jamais os nossos esforços serem lembrado? Ou seja, , em um país tão sem memória como é o nosso, será que alguns de nós têm mesmo interesse em se tornar imortal permanecendo para sempre na memória coletiva?
Segundo Friedrich Engels, baseado nos estudos e pesquisas do antropólogo Henry Morgan, é a família monogâmica que inventou o processo que redundou na desigualdade social da vida moderna. De fato, é na continuidade da família através dos filhos que a imortalidade terrena se expressa quase sempre. Porém, é também no processo de desejo de acumulação de bens desse tipo de organização social, que o capitalismo baseia a todo custo as suas realizações. E isso ele faz através das suas melhores relações com o capital por meio de pelo menos cinco instrumentos, o trabalho, a produção, o consumo, o lucro, e principalmente, a acumulação de capital. Esse fetiche pela realização de riquesas nos curtos espaços do tempo de uma vida, retirou de nós ainda mais a necessidade que nós sentíamos nas primeiras organizações familiares, geralmente mais numerosas, de sermos imortais permanecendo na memória da coletividade. Sendo assim, se nós não nos interessamos mais em permamecer vivos nas gerações futuras, haveriam razões para pensarmos em plantar coisas boas hoje para que o mundo seja de fato melhor no amanhã da nossa eternidade ausente?
Costumo parafrasear para os meus alunos algumas máximas de Hanna Arendt, que dizia coisas do tipo: se você não tem nenhum compromisso com o mundo em que você vive, se você não tá nem aí pra política, se você não quer nem saber de questões ecológicas como o aquecimento global, se você não se ocupa com a escassez dos nossos recursos hídricos, se você não se preocupa nem em votar com o mínimo de responsabilidade, e ainda vende o seu voto para qualquer um candidato, estão por favor, não tenha filhos, pois ter filhos e não se ocupar com o mundo é como se um casal tivesse um lindo e gracioso bebê, mas ao invés de dedicar a ele todo cuidado de pais responsáveis, o pusesse para dormir em um quarto sujo, mau cheiroso, repleto de ratos, baratas e outras heranças da sujidade. Desta maneira, se você tem filhos ou pretende te_los, é necessário que você tenha a dignidade e o compromisso ético e moral de limpar o mundo que você quer inserí_los. Ou será você um irresponsável? pois ter filhos, ainda que seja apenas um, é assumir sim um compromisso direto com a imortalidade. Quem tem filhos se torna imortal de uma certa maneira, pois gerar filhos é a continuidade perene de uma consciência que nós tínhamos no passado, mas que estranhamente perdemos na emergência do Cristianismo associado à vida moderna, que é a consciência da imortalidade como perpetuação no tempo, que é a consciência da imortalidade como perpetuação na natureza, que é a consciência da imortalidade como perpetuação na história, e acima de tudo, que é a consciência da imortalidade como perpetuação na memória. Pois se você não tem nenhum compromisso com o mundo que você vive, se você não tem nenhum compromisso com as gerações do futuro e se você não tem nenhum conpromisso para com a tua imortalidade na memória das gerações futuras, por favor, não tenha filhos.
Eldon de Azevedo Rosamasson
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