CRÔNICA E FILOSOFIA: O BRASILEIRO SABE OU NÃO SABE VOTAR

As últimas pesquisas envolvendo os supostos candidatos à presidência da república para as eleições de 2022 apresentaram para nós uma certa surpresa, que eu penso que muitos não esperavam, principalmente a crítica especializada, pois Bolsonaro, mesmo tendo a pior avaliação de um presidente da república nos primeiros anos de um governo durante o período pós redemocratização, apareceu nas pesquisas mais recentes com surpreendentes 38 por cento das intenções de voto contra 14 por cento de Fernando Haddad, e outros candidatos aparecem com menos ainda. E com uma surpresa mais curiosa neste caso, pois aparentemente, são exatamente os incidentes políticos que estão ocorrendo em meio à Pandemia da Covid 19 que o favorecem, como é o caso do auxílio emergencial, mesmo com todos os desastres administrativos que nós estamos presenciando na gestão atual, principalmente no Ministério da Saúde. Mas será o que isso significa como sabedoria popular diante de um pleito, sobretudo presidencial? Será que isso é uma das provas de que o brasileiro não sabe votar?

Primeiramente, para tentarmos responder se o brasileiro é um povo que sabe ou não sabe votar, é muito importante a gente procurar compreender em que nós voltamos quando comparecemos às urnas, pois eu penso que isso tem muita relação com os nossos desejos, com a História do Mundo, e sobretudo, com a História do Brasil.

Em Primeiro lugar vamos falar de voto a partir do que é o desejo. Para isso vou citar Gilles Deleuze e Feliz Guatari, que na obra O Anti Édipo, cujo principal tema é esse, falaram sobre a produção do desejo como condição imanente em todos nós. Mas Deleuze e Guatari não consideravam os desejos humanos da maneira tradicional como a Psicanálise o compreendia, pois no Anti Édipo, os desejos não são apenas a condição inconsciente que antecede a libido, pois nesta obra, desejar é condição humana, que é produzida socialmente, e não um produto das condições pré conscientes dos indivíduos. A ponto desses pensadores identificarem os humanos como "máquinas desejantes". E o que isso quer dizer? isso significa simplesmente que para que a sociedade capitalista produza os mais diversos valores de troca, que se terrificam em cada produto, bem ou serviço, a sociedade pós capitalista e pós industrial produz primeiro a falta, para que a falta promova o desejo de preenchê_la. E essa falta põe em movimento as pessoas como máquinas desejantes para que elas possam consumir e para que o fluxo desejante  máquinal imanente na condição humana seja transmitido no devir da produção.

Baseados nesse pensamento, Deleuze e Guatari concluíram também que é possível que uma vez que as nossas máquinas desejantes produzam cada vez mais produtos do desejo, elas podem também fazer uma sociedade produzir a sua própria opressão. Agora por exemplo, nós estamos diante de uma informação que já está muito clara do ponto de vista científico, pois se o Corona Vírus ainda não se propagou com muita velocidade em um país, como era o caso do Brasil até os meses de fevereiro e março, quando a gente se deu conta da gravidade da doença, claramente o mais correto é investir no isolamento social para que gradativamente a nação possa abrir a economia. Pois simplesmente já está provado que se o país fizer o contrário, ele vai congestionar o seu sistema de saúde com um número excessivo de casos e ainda vai ter grandes prejuízos econômicos inevitáveis nos dias de hoje, pois somado a tudo isso, a reabertura econômica será mais demorada aínda. E hoje no Brasil, nós estamos diante de uma dificuldade enorme de compreender uma informação tão simples como essa, apesar das complexidades da sua operação. Vide o nosso suposto platô, que permanece em uma alta relativamente inalterada. Porém a pergunta que eu faço é a seguinte: será que existe em nós a produção de desejos pelo nosso próprio caos social, político, econômico e sanitário?

A produção do desejo como foi dito acima, nasce de uma sociedade que produz a falta. Nós por exemplo, não temos nenhuma necessidade de consumirmos água gelada para matar a sede, mas a indústria de bens duráveis criou uma falta e um desejo a ser  saciado por alguns produtos, que neste caso são principalmente os nossos aparelhos de refrigeração, que satisfazem outros desejos produzidos em escala industrial, a água gelada,, as cervejas, os refrigerantes e etc. Ou seja, nem sempre a produção do desejo está fundamentada a uma racionalidade evidente ou necessariamente bem organizada, pois água gelada não mata mais a sede que água fresca, salvo uma sensação maior de um prazer que foi fabricado junto à Indústria de bens duráveis. 

Um dos exemplos mais recentes da produção social e política de um desejo hoje é a propaganda que o Bolsonaro faz da Cloroquina, pois isso também pertence a essa dimensão não muito racional da condição humana como máquinas desejantes, uma vez que a produção desse desejo também supre uma falta. Mas no caso desse medicamento, a falta que está sendo produzida pela propaganda do governo não está sendo suprida por uma medicação produzida a partir de comprovações científicas evidentes, mas sim por um desejo em si mesmo de que uma medicação de eficácia pra lá de duvidosa no combate ao Corona Vírus seja produzida em forma de um amuleto da sorte que representa uma luta simbólica e mítica contra  a Pandemia no Brasil. Por isso não sei até que ponto, mas isso também pode gerar voto. E quando o governo liberou gradativamente a quantia de 600 reais aprovada pelo Congresso Nacional e a prorrogou por mais um tempo, ele colocou nas mãos da população mais carente o principal elemento de fluxo desejante em uma sociedade capitalista, o dinheiro. Mesmo que essa quantia seja insuficiente em termos da sustentação de uma família, e até de uma só pessoa. Nestes casos, dando uma primeira resposta a pergunta, em que nós votamos, nós voltamos sim em desejos socialmente fabricados. E uma vez que o voto majoritário também faz parte desse grande fluxo desejante, não há como uma ajuda emergencial não resultar diretamente em voto na urna para A ou para B. E como a nossa formação popular ainda é muito insuficiente, sobretudo à escolarização dada às populações mais carentes, fica muitissimo difícil para essa grande massa informe de pessoas mau escolarizadas, compreenderem que a ajuda emergencial foi construída em conjunto por vários setores da sociedade. Inclusive pela imprensa e pelo Congresso Nacional, e não apenas pelo presidente da República.

Nós vivemos em meio à uma tradição capitalista que tem se desenvolvido com todas as suas contradições desde meados dos séculos XV e XVl. Mas devido à incrível fluidez desse sistema, o Capitalismo consegue fabricar uma tal carga de desejos, que mesmo ele produzindo muita informação e possibilidades de conexões como nos dias de hoje, ele também sempre foi capaz de produzir o próprio desejo dos indivíduos pela sua própria opressão. Não nos esqueçamos que uma das peças publicitárias mais populares que circulou pelas redes sociais na campanha do Bozo, foi um grande número de pessoas que diziam sim que elas eram robôs do Bolsonaro. Ou seja, as pessoas com isso estavam simplesmente admitindo simbolicamente, que na condição de robôs do Bolsonaro, elas estavam totalmente dispostas a submeter qualquer das suas inteligências políticas ao monitoramento central do Palácio do Planalto. Teve gente até que teatralizou movimentos de robô na rede para dizer simplesmente assim: eu sou robô do Bolsonaro sim, até porque eu não sei pensar e estou disposto a ser oprimido sim talkey? Ou seja, pessoas também escolhem e votam em um candidato com a expectativa de que eles possam oprimí_las.

A produção do desejo como condição capitalista e política em cada sociedade tem uma história específica, que também está relacionada à história de cada um dos seus processos políticos e revolucionários, que no Brasil sempre foi muito específico e marcado com o que as Ciências Sociais denominam de "revolução por cima." Ou seja, salvo algumas guerras e movimentos populares revoltosos como a Farroupilha, a Cabanagem, a Revolta de Canudos, a Revolta da Vacina e etc, os movimentos políticos e revolucionários que vieram e permaneceram indeléveis no Brasil, sempre se caracterizaram pelo afastamento das bases populares dos processos de mudança em cada época em que os mesmos foram realizados. Isso realizou uma configuração social de percepção elitista dos nossos desejos como produção política. O resultado disso, é uma falta de percepção identitária por parte das nossas mais diversas bases sociais, que se vêem nos seus bairros, guetos, favelas e vielas, mas que não sabem muito bem que lugares elas devem ocupar nas superestruturas do poder política. Por isso é que a formulação dos nossos próprios desejos como fenômenos políticos, acabam não tendo quase nada que represente as pessoas mais carentes, que habitam em cada uma das nossas bases de representação política e social. Razão também pela qual estranhamente, muitos do povo desejam a realização em outras pessoas que não são eles e a sua classe social, de benefícios que na realidade não lhe pertencem. E por que isso ocorre tanto no Brasil? Isso ocorre por aqui porque diferentemente de muitos países, inclusive daqui na América do Sul, as representações revolucionárias do país, que também produzem desejos por participação política e por lugares privilegiados no jogo do poder, quase não habitam as bases populares da sociedade brasileira, pois da mesma maneira como o nosso espírito revolucionário se caracterizou em revoluções feitas por cima, os nossos próprios desejos populares na participação política continuaram produzindo desejos por cima em pessoas que estão por baixo. E é por isso que eu digo, respondendo à pergunta do título, se o brasileiro sabe ou não sabe votar, a realidade é que no Brasil nós também votamos para angariar mais poderes a quem já é bem mais poderoso que nós, e onde nós produzirmos um desejo mórbido pela nossa própria opressão. Vide agora, pois apesar da negligência do governo Bolsonaro estar prejudicando gradativamente muito mais quem pertence às camadas mais não privilegiadas da sociedade, as intenções de voto no Bolsonaro voltou a subir.

Um dos motivos que me levam a compreender que a produção dos nossos desejos populares estão sempre muito relacionados a sentimentos orientados a favor das nossas elites econômicas, sociais e políticas, é que nós não desenvolvemos no Brasil uma tradição de mobilização social voltada para termos uma "Frente Popular" de fato legitima, onde os trabalhadores exercessem o protagonismo nas nossas ações políticas. Por exemplo, a Revolução Republicana que destituiu o império brasileiro foi um movimento mais exotérico que popular, realizado pelas nossas elites sociais, políticas, econômicas e militares e por setores de instituições como a Maçonaria, que sequer retirou benefícios da Família Real, que aliás, permanecem até os dias de hoje. O golpe militar de 32 contra o governo de Washington Luiz, liderado por Getúlio Vargas, apesar de orientar os fundamentos do Estado brasileiro moderno instituído a partir da consagração do Estado Novo em 37, foi um governo extremamente repressor, que matou, que perseguiu, que torturou e que até mandou militantes judeus e comunistas para serem mortos pelos nazistas, apesar de certa melhoria para os nossos trabalhadores. Quando os movimentos populares foram chamados, eles participaram das lutas contra a ditadura militar brasileira, principalmente a partir de maio de 68. Eles tiveram também uma boa participação no processo de redemocratização do país, eles participaram da campanha das Diretas Já, eles participaram do Fora Collor, que gerou inclusive o primeiro impeachment de um presidente brasileiro e etc.. Mas apesar disso tudo, os setores populares sempre tiveram muitas dificuldades de posicionar as suas bases de pensamento no protagonismo da agenda política da nação. Tanto é que nós continuamos a ser um dos países mais desiguais do mundo até hoje, e com um serviço público na área da educação, da saúde, do saneamento básico e da cultura extremamente precário para a grande massa. Mas por incrível que pareça, as nossas orientações populares de produção máquinas de desejos políticos, que favorecem sempre aos mais abastados, fazem com que o próprio eleitor menos favorecido, não priorize esses serviços públicos na hora de depositar o seu voto na urna. E talvez os mais carentes sejam até capazes de votar no Luciano Huck pra presidente da república simplesmente pelo fato de ele distribuir prêmios para alguns dos seus expectadores nós sábado à tarde.

Tivemos algumas poucas oportunidades de realizar formas importantes de rovolução por baixo, para que através delas, as nossas bases sociais, que ocorrem no universo do trabalho, viessem a realizar parte das agendas que formam o fluxo maquinal dos nossos desejos dentro das suas origem popular, e os mesmos ocorreram principalmente na formação do PT e na Constituição de 88.

O movimento operário do ABC paulista e a consequente formação do PT, foram as principais iniciativas sociais que de fato deram voz aos mais diversaos nas suas bases populares. Inclusive quando o Partido se lançou à presidência da república com o Lula mas eleiçõrs de 89 até a eleição de 98, o Partido fazia parte do que era chamado de Frente Brasil Popular, revivendo no país as ideias de Frente Popular que George Dimitrov fundou na Alemanha para lutar contra o Nazismo, e que se popularizou como movimentos de esquerda através do mundo. Mas quando o Partido chegou ao governo federal, o que prevaleceu mesmo foram as ideias de "frente ampla." E a frente ampla ocorre quando os movimentos políticos de origens populares aceitam que parte das suas agendas de protagonismo político sejam violadas em benefício de reformas por cima, onde estão os principais valores do capital, e não do trabalho. Razão pela qual antes mesmo do apoio das elites econômicas para as eleições de 2002 que o PT venceu pela primeira vez, o Partido escreveu a tal "carta aos brasileiros", que na realidade, foi uma carta ao sistema financeiro. E foi por isso que o PT sempre privilegiou a "frente ampla" de reformas por cima, e não a "frente popular" das revoluções por baixo. Desta maneira, até quando nós voltamos no PT e comemoramos conquistas sociais importantes para os trabalhadores e pessoas mais carentes, foram as reformas por cima que motivaram o nosso capital político e o fluxo desejante dos nossos votos. Pois independentemente de sabermos votar ou não, é em agendas políticas que estão disponíveis para a população que nós votamos sempre. E uma frente popular de protagonismo dos trabalhadores em condições de vencer uma eleição, talvez tenhamos tido por aqu só até às eleições de 94, a penúltima que o Lula perdeu. Resultado disso, quando Lula e Dilma foram os representantes da esquerda histórica na presidência da república, tivemos reformas por cima, porém a educação popular continuou a não ter o protagonismo devido no nosso crescimento e desenvolvimento social, político e econômico. A saúde pública continuou a não atender a população com a sua devida venha, principalmente nos investimentos em saúde preventiva e com os médicos de família como é feito até em Cuba. E dentre muitas outras coisas, as alianças indiscriminadas da frente ampla petista de 2002 a 2016, desmobilizou ainda mais os nossos movimentos populares, que tinham a tarefa de trazer a agenda das nossas bases populares para os nossos desejos a serem transformados em apoio político e em voto.

Até a Constituição de 88 ser celebrada, ela abrigou na sua formação gradativa os mais diversos interesses nas suas discussões até a sua consagração final. Do ponto vista do que ela significa para a Democracia e para o Estado de direito, penso que ela seja o melhor dos documentos magnos que nós já tivemos. Porém na época, o PT foi contra a sua promulgação, pois o partido compreendia que ela não favorecia a contento a classe dos trabalhadores e as bases populares da sociedade brasileira. Nossa Constituição foi baseada tanto nas liberdades das ideias de Estado liberal como nas ideias da Socialdemocracia e de Estado de bem estar social. Mas infelizmente ela foi construída em uma fase de ascensão do Neoliberalismo na América Latina. Razão pela qual ela passou a ser mais uma representante das nossas revoluções por cima, em detrimento das suas interpretações de bases populares que também estão nela.

Hoje em dia, com toda a desmobilização no mundo do trabalho e nas nossas bases populares, que têm ocorrido não só neste país, tem se acelerado um processo  Neoliberal na economia, que também chegou por aqui, principalmente desde a ascensão de Fernando Collor de Mello à presidência da república. Também por isso, penso que nós temos hoje poucas referências para realizarmos algum tipo de revolução ou de reforma por baixo com uma forte frente popular, que poderia se fosse esse o caso, reorganizar melhor as nossas mobilizações políticas de base. Esses movimentos,  poderiam colocar os nossos votos  em uma ordem de desejos que de fato nos representassem, para que as máquinas que mobilizam esses fluxos desejosos pudessem nos favorecer aqui onde estamos, na base da pirâmide social. Mas timidamente, ora aqui ora ali, a gente tem se mobiliado, como aconteceu nas manifestações de 2013. Mas foram manifestações muito difusas e com fluxos de desejos dispersivos e também muito desorganizados. Também timidamente, apoiadores pró ou contra o governo do presidente Jaír Bolsonaro se manifestam esporadicamente, mas com fluxos de desejos muito mais voltados para o ódio e para ressentimentos políticos, os quais nós vamos precisar ainda de alguns anos, e talvez até de algumas décadas ou séculos para compreender melhor. E também timidamente, torcidas organizadas e trabalhadores de aplicativo têm se mobilizado. Os primeiros são contrários ao governo atual, e os segundos estão tomando a consciência da dispersão dos trabalhadores autônomos no país e da precarização, da ubberização e da ifoodização que hoje ocorrem no mundo do trabalho. Sobretudo agora com a Pandemia, onde a imperícia do governo federal tem se tornado o principal algoz do aumento infinitesimal de todas as inseguranças e incertezas a respeito do futuro do nosso país, onde já são os mais carentes que estão sofrendo e morrendo mais e em maior percentual. Mas o fato da avaliação do presidente da república ter melhorado nos últimos dias, apesar de todo o caos que o próprio mandatário tem provocado nessa oportunidade, e diante do fato de ele estar disparando nas intenções de voto, mesmo depois de todo o prejuízo para o país que ele simplesmente ajuda a agravar, sobretudo entre a população mais carente, onde exatamente ele tem crescido nas pesquisas, tem me feito insistir na seguinte pergunta: será que é possível que pessoas do povo sejam mesmo capazes de desejar, produzir e votar na sua própria desgraça e na sua própria opressão?

Eldon de Azevedo Rosamasson

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