CRÔNICA E FILOSOFIA: DIVERSAS INFÂNCIAS

Essa polêmica toda sobre aquela conversa indevida e de péssimo gosto do presidente Bolsonaro com a tal Youtuber de 10 anos, me fez voltar a refletir sobre o que é ser criança e adolescente no mundo de hoje, sobretudo no Brasil. Ou melhor, depois desse episódio, eu retornei ao pensamento a respeito dos lugares que cada forma de infância tem, principalmente na sociedade brasileira, que trata meninos e meninas de acordo com o lugar ocupado pelas famílias de cada uma delas no status quo. Vou dar um bom exemplo disso. Em uma oportunidade eu ouvi um professor falar para mim sobre um seu aluno muito bagunceiro, muito abusado e muito pirracento. Por isso naquela mesma semana, ele precisou levar a criança para uma conversa com a direção da escola, visando uma possível disciplina que corrigisse minimamente o menino. Mas ao segura_lo pelo braço para tal, o garoto se jogava no chão como se fora um daqueles perversos polimorfos muito mimados. Mas o professor, se utilizando da sua autoridade e de alguma força física, conduziu a criança até a sala da direção da escola, mesmo tendo que praticamente arrastá_la pelos corredores da instituição de ensino público. Se tivesse sido apenas isso, eu já acharia tudo muito exótico, pois levar uma criança nos dias de hoje para uma situação a qual ela não deseja ir, constrangendo_a e arrastando_a pelos corredores de uma escola através da força eu já acharia um pouco fora da órbita psicopedagógica em termos de Estatuto da Criança e do Adolescente. Mas a minha surpresa maior foi quando o professor falou algo mais ou menos assim: "se fosse filhinho de papai tudo bem, eu até entenderia, mas criança pobre fazendo pirraça como se fosse criança rica não dá né." Ou seja, neste caso, o professor agiu de acordo com uma representação social que se encontra muito presente no nosso imaginário em pleno século XXl, na qual nós entendemos que mesmo na gestão dos direitos iguais do Estatuto da Criança, a igualdade deve ser praticada de maneiras diferentes, de acordo com o grupo social que cada criança venha a pertencer nas muitas infâncias que nós cultivamos.

Evidentemente que existe uma história filosófica que nos ajudou a construir as ideias sobre o que é a infância nos dias atuais, pois até a segunda metade do século XVlll, principalmente até  os dias de Jean Jaques Rousseau, não havia uma separação formal muito clara entre o mundo dos adultos e o universo das crianças, no qual os infantes até então eram vistos como se fossem uma espécie de miniaturas submissas dos adultos, mas que ainda não haviam crescido. Porém quando Rousseau fala que "todo homem nasce livre, mas a sociedade o corrompe", ele estabelece um corte existencial entre uma "pureza" natural vivida por meninos e meninas, em detrimento do estado corrompido do mundo dos adultos. Neste contexto, muitos grandes pensadores fizeram parte dessa tradição como Sigmound Freud na invenção da Psicanálise, e principalmente Jean Piaget, que dividiu categoricamente as fases do desenvolvimento humano, apontando que em cada período das etapas infantis existe uma lógica específica na mente dos infantes adequadas a cada momento. E não é nenhum exagero dizer que os estatutos de crianças e adolescentes, que começaram a se espalhar pelas democracias do mundo a partir do primeira metade da década de 90, fazem parte dessa longa tradição. Mas hoje, é muito importante a gente procurar entender qual é o papel que o presidente Bolsonaro e os seus apoiadores mais ferrenhos têm dentro desse processo, uma vez que parece que eles não são muito a favor de muitas das conquistas humanitárias mais defendidas por diversas formas de bom senso. Sobretudo a favor da humanização da infância.

Por razões de quase pura formalidade, as heranças européias e eurocêntricas que tanto influenciam a nossa educação formal, procuram sempre enquadrar os educandos dentro de um padrão classista de aculturação de classe média. Mas historicamente no Brasil, as populações mais carentes desenvolveram o hábito de deixar a escola bem mais cedo. Sobretudo em um passado recente,  principalmente por razões de necessidade. Com isso, a própria cultura formal de sofisticação do papel de inocência da infância, privilegiou muito mais os jovens de famílias mais abastadas. E mesmo quando as crianças mais carentes frequentavam as excelentes escolas públicas que nós tivemos até meados da década de 60, muitos representantes da nossa classe média, que eram por hábito considerados os mais  promissores, também estudavam nessas escolas, mas eram em média entregues ao Classicimo das nossas tradições escolares por mais tempo. E consequentemente, eles também eram encaminhados ao direito à inocência e a tutela de mestres que deveriam bem cuidar da sua pureza existencial. Ao passo que o Anticlassecismo não formal era dedicado às classes menos afortunadas, que além de não poderem usufruir da inocência rousseauliana dos jovens de classe média, ainda foram entregues à precocidade de uma vida adulta de dureza e de trabalho, que não lhes dava sequer o direito à inocência infantil proposta por Rousseau. E neste contexto, voltando à falar do presidente Bolsonaro, eu penso que é exatamente nesse limiar que ele e seus principais correligionários se encontram. Ou seja, a live entre o presidente e a tal Youtuber mirim, somada às suas muitas opiniões a respeito dos estatutos de crianças e adolescentes, demonstram que o presidente e os seus simpatizantes, são indivíduos que vivem no século XXl, mas os seus conceitos sobre a inocência de uma criança, mesclam a pureza da infância piagetiana em desenvolvimento, com a sua convivência precosse da infantilidade no universo dos adultos, com o objetivo de que o mundo se torne precocemente melhor com crianças vivendo normalmente no mundo do trabalho. Pelo menos no discurso.

Essa realidade tácita de que uma criança não deve ser considerada um ser de evidente pureza e inocência, salvo se for menino ou menina da classe média em diante, nós percebemos de maneira clara, principalmente nas nossas grandes cidades. Acima de tudo em terminologias do tipo "crianças" ou "menor infrator." Pois quando as pessoas se referem a um alguém menor de idade que pratica um ilícito, mas o mesmo é um cidadão do tipo jovem da classe média em diante, predominantemente a sociedade se refere ao mesmo como sendo uma "criança" que apenas praticou uma travessura edionda. Neste caso, por ser um indivíduo de famílias melhor representadas socialmente, a condição da sua inocência de criança ou adolescente é bem melhor preservada. Mas quando um cidadão é menor de idade, pertence aos grupos socialmente menos favorecidos, mas comete um ilícito, quase sempre desaparece frases como "uma crianças travessas" do vocabulário de muitas e muitas pessoas, em prol do termo "menor" ou "menor infrator." E essa frase menor ou "menor infrator" é muito significativa, pois ela sugere implicitamente, que ser um infrator está mais ou menos na natureza desse tipo de cidadania infantil mais empobrecida, cujo a miséria, além de lhe retirar vários e vários benefícios e privilégios, ainda lhe rouba o direito a inocência que Rousseau atribuibuiu às crianças.

Essa forma de desumanisar a juventude mais carente através do tratamento "menor" é uma coisa tão séria, que é muitíssimo comum hoje, nas periferias da cidade do Rio de Janeiro, os próprios jovens tratarem_se como menor, pois uma vez que o sistema jurídico, a Política e a própria milícia os denominam dessa maneira, como menores, e não necessariamente como jovens, como crianças ou como adolescente, é de praxe a gente ouvir coisas do tipo: chega aí menor, se liga menor, menor, segura essa peça aí! Ou seja, menor, segura essa pistola aí.

Porém a novidade dessa vez é que o presidente Bolsonaro retirou da invisibilidade as ideias que são contrárias à inocência e a pureza das crianças, até então escondidas e aprisionadas nos interiores de uma Febem, de uma Funabem ou dentro dos degases da vida. Pois ele traz essas idéias para a linha de frente das afirmações políticas. Aparentemente, é como se o presidente estivesse distribuindo de maneira igualitária o conceito de que as crianças têm mesmo é que ser tratadas mais ou menos igual aos adultos. Com isso, é como se ele estivesse querendo democratizar fenômenos polêmicos como o trabalho infantil. Mas quem conhece um pouquinho só de História de Brasil, quem sabe o mínimo sobre a nossa distribuição de renda  e quem pesquisa um pouco os  privilégios que ocorrem no país, sabe muito bem que na mais pura realidade, qualquer processo de descontinuidade de direitos da criança e do adolescente por aqui, que nos reconduza a um trabalho infantil indiscriminado, levará como sempre ocorreu, ao empobrecimento das massas de jovens sem direito ao ensino básico como tem sido a nossa tradição por muitos e muitos anos. Pois com certeza, como ocorre aqui até hoje, as crianças da classe média em diante continuarão tendo muito mais acesso a todas as fases do desenvolvimento propostas por Piaget, mas os meninos e meninas mais empobrecidos continuarão cada vez mais a não ter sequer o direito à inocência  proposta por Rousseau.

Eldon de Azevedo Rosamasson

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