CRÔNICA E FILOSOFIA: A FILOSOFIA DA MULTIDÃO

Um dos primeiros pensadores modernos que considerou o possível papel de destaque das multidões dentro do processo político foi Nicolau Maquiavel. Na sua principal obra, O Príncipe, o filósofo se destaca por ter sido o grande vulto que se posicionou com visibilidade no século XVl sobre o papel da laicidade do príncipe, que até então era quase sempre mitificado como um enviado de Deus, dos deuses e dos espíritos da natureza. Maquiavel compreendia que um bom governantes deveria se orientar através de dois conceitos, sobre a ideias de "virtus" e sobre a ideia de "fortuna." A primeira, a virtude, depende exclusivamente do talento e da habilidade política do gestor. Mas a fortuna é simplesmente a sorte a qual um príncipe não pode controlar. Mas a mesma pode favorecê_lo ou não. Para que o Principe seja bem sucedido, a leitura dessa fortuna deve ser feita virtuosamente por esse líder supremo sob a base dos efeitos que os ventos da fortuna sopram no ânimo das multidões, que devem ser habilmente utilizadas pelo governante, para que o mandatário se mantenha no poder. A partir disso, eu fui buscar esse momento histórico por causa dos dias políticos que nós estamos vivendo no Brasil e os seus fenômenos de massa intrínsecos, onde nós temos um presidente da república, que por mais que não tenha quase nenhuma cultura formal à disposição da sua inteligência, tem se beneficiado muito dos ventos da fortuna proporcionados pelos últimos eventos políticos da História do país, sobretudo agora, pela Pandemia e pelo auxílio emergencial, por mais que isso pareça tão contraditório, devido inclusive à postura do presidente perante quase 150 mil mortos até o presente momento. Tendo em vista essa realidade, eu faço a seguinte pergunta, qual é o papel das massas, ou seja, qual é o verdadeiro papel das multidões na democracia? será que existe alguma diferença substancialmente possível entre a multidão, as massas e a cidadania na nossa democracia ou nós precisamos mesmo é de uma superestrutura austera para controlar as maiores paixões populares? Ou será que democracia é isso mesmo, simplesmente os poderes da República ouvir a voz das massas para decidir o destino dos povos?

Antes de qualquer consideração mais detalhada sobre o papel decisivo que as multidões têm hoje em dia no processo político, é importante nós entendermos como a partir de vários momentos da modernidade, nós criamos as muitas instituições de acolhimento das multidões com a invenção da imprensa nas suas mais diversas fases, culminando hoje com a criação da Rede Mundial de Computadores, que agora é capaz de fazer com que quase todas as pessoas possam se comunicar com os quatro cantos da terra. Pois é desse último fenômeno tecnológico e social que o presidente Bolsonaro se beneficia desde as eleições de 2018.

Mas até que nós chegássemos a vislumbrar o início do que nós temos hoje com as nossas muitas Instituições de acolhimento das massas em uma infraestrutura urbana, social e política, as nossas organizações gentílicas não eram fundamentadas em  espectativas populares com a mesma natureza das de hoje, pois via de regra, os primeiros agrupamentos humanos ao se agregar, se dividiam em grupos familiares e em tribos enlaçadas e divididas por evidências consanguíneas. Mas juntamente com as primeiras grandes civilizações e impérios, surgiram também as primeiras cidades importantes, as quais nos ofereceram o primeiro material histórico para que os primeiros fenômenos de massa aparecessem aos povos. Foi neste contexto, que em lugares como Grécia e Roma, nós tivemos as primeiras referências sociológicas, culturais e antropológicos, que guardadas as devidas proporções, são análogas às ideias de cidade, que dependendo das circunstâncias, manifestaram fenômenos humanos semelhantes aos comportamentos de massa que nós temos hoje.

Segundo Aristóteles na sua obra Política, os gregos foram os primeiros grupos humanos a inventar uma estrutura social dentro do que nós chamamos de política à maneira clássica, pois eles criaram a dimensão pública da vida e a separaram do lugar privada onde estavam socialmente registradas as famílias, que davam origem às divisões em etnias e às conquistas das pequenas, das grandes e das médias dinastias. Porém os cidadãos, que se beneficiam das ideias de liberdade, e que por isso detinham o direito à cidadania, não estavam ainda incluídos em uma tecnologia social de acolhimento das multidões no jogo da política como ocorre desde à Modernidade. Inclusive no primeiro grande exemplo de democracia que nós tivemos na cidade de Antenas, somente pouquíssimas pessoas eram beneficiárias desse direito. Ou seja, mesmo assim, ainda não haviam formas alternativas de participação das massas dentro da esfera pública das cidades. Porém isso se modificou sobremaneira quando o Império romano passou a ser a principal referência política do mundo antigo, pois Roma, apesar de criar uma cidadania de privilégios, que era representada principalmente pelos Patrícios, os grandes proprietários de terra, no Senado, Roma foi a responsável por realizar uma cidadania muito mais inclusive, não somente entre eles, mas também em meio às nações conquistadas, para que esses novos cidadãos estrangeiros fossem também aliados do Império. Até que as inúmeras reivindicações populares fizeram aparecer os "tribunais da plebe", que representavam as massas no Senado. Desta maneira, a República Romana demonstrou com uma clareza jamais vista anteriormente, que as massas, uma vez mobilizadas, podem sim ter participação decisiva no jogo político. Porém, com a pilhagem gradativa do Império Romano e com a reorganização política denominada de "era medieval", como consequências, fez com que a inclusão definitiva do povo no jogo político tivesse que aguardar até a era das grandes revoluções a partir do século XVll para trazer de volta essas expectativas.

Além das primeiras manifestações de politica, de democracia e de república da História representarem as primeiras infraestruturas que no futuro possibitariam uma inspiração das multidões para o debate político, antes que isso se manifestasse de maneira mais clara na "era das revoluções," a invenção da imprensa por intermédio do alemão Gutemberg na segunda metade do século XV, abriu um importante precedente dentro desse processo inclusivo, pois até a criação das primeiras impressoras, a realidade era descrita através de narrativas, e geralmente eram transmitidas por autoridades e Instituições específicas, os patriarcas, os sacerdotes, os rabinos, a Igreja e etc. Mas com a velocidade das informações proporcionadas pelos mais diversos veículos de comunicação, que foram engendrados desde Gutemberg como os periódicos, os Correios e Telégrafos, o Telefone, o Rádio, o Cinema, a TV, os computadores e finalmente, a Internet, quase todos foram sendo incluídos aos poucos na possibilidade de também participarem das opiniões e de serem vistos e ouvidos por muita e muita gente. Com isso, a cultura narrativa e em grande parte mítica, que era regularmente aceita pelas comunidades humanas como verdades quase absolutas, começaram a ser substituídas por um tipo novo de subjetividade, a subjetividade que proporcionou a oportunidade de cada um de per si ter em tese a sua própria opinião sobre os mais diversificados assuntos, inclusive sobre os temas da política. Pois o imediatismo cada vez maior das informações fez com que as mesmas fossem cada vez mais adequadas a uma cultura de inclusão das massas nos temas sobre o que é público.

Essa infraestrutura social de inclusão da voz das massas no processo de participação política chegou ao seu momento de maturidade desde a segunda metade do século XVll na Revolução Gloriosa ocorrida na Inglaterra. E a posteriori, a partir da segunda metade do século XVlll com a Revolução Americana e com a Revolução Francesa, esse processo inclusivo completou parte de um longo processo histórico de inclusão política das massas. Sobretudo na Revolução Francesa, que teve a participação direta do povo na deposição da Monarquia e na decapitação de reis e rainhas. Pois esses três momentos revolucionários substituíram o elitismo das monarquias  pelos ideais republicanos eventualmente democráticos a princípio. 

Sob a égide dos significados das origens latinas e gregas dos nomes rex publique, que significa coisa pública e demo krátia, que quer dizer poder do povo, a república e a democracia moderna sugeriram a demanda gradativa da inclusão cada vez mais numerosa dos povos nos espaços do poder político. Mas como incluir tanta gente assim nas decisões da gestão pública? qual a tecnologia social a ser empregada nessa empreitada tão desafiadora? A solução desse dilema seria encontrada em um decisivo fenômeno sociólogico, a Constituição. Porém as constituintes, ao mesmo tempo que prometiam ser o espaço ideal das representações políticas que garantiriam pelo menos na promessa que as vozes populares podessem ser ouvidas, em muitos momentos, desde as suas origens, viveriam as mais diversas crises nos interiores  das suas próprias características constitucionais, republicanas e democráticas como ocorre hoje nas crises de representação democrática protofascistas dos tempos de agora, as quais nos apresentam personagem como Sayyp Erdogan presidente da Turquia, Vladimir Putin presidente da Rússia, Viktor Orban presidente da Hungria, Nicolás Maduro presidente da Venezuela, e finalmente personagens como Donald Trumph presidente dos Estados Unidos e como Jair Bolsonaro presidente do Brasil, pois esses são líderes que têm se aproveitado de uma grande onda de crise de representação política no mundo para colocar em pauta as suas agendas autoritárias, microfascistas e boçais para as grandes  multidões urbanas, que apesar de terem os seus direitos sociais e políticos relativamente postos nas constituições de seus países, não se sentem representadas na formalidade do jogo político. Com isso, emerge a figura autoritária de supostos salvadores da pátria, que ganham popularidade exatamente por realizar o que parte da massa urbana deseja, pois ela quer as vezes que pelo manos uma pessoa se vingue das elites do poder constituído e realize o deboche público que ela deseja fazer à classe dos políticos, mesmo que tal deboche seja uma oposição apenas aparente na prática e muito improvável nas suas intenções devido ao seu apelo ilegal, anticonstitucional, economicamente inviável e excessivamente anti_humanitário.

O desafio de se comunicar com uma cultura de massa e com as suas mais diversas tribos urbanas, que hoje estão predispostas na Rede na sua maioria esmagadora, pode ser refletida exatamente através da palavra massa. Pois o que é uma massa no nosso imaginário? Uma massa existe exatamente quando nós queremos fazer, formar ou construir alguma coisa a partir de matérias primas que ainda não têm forma definida. E é exatamente isso que é uma massa urbana pós industrial e agora pós cultura digital, um grande aglomerado de subjetividades atravessadas por escalas infinitesimais de desejos e frustrações impossíveis de ser todas representadas ao mesmo tempo pelos poderes da República, por mais democrática que eles sejam ou pareçam ser. Mas mesmo com todas essas dificuldades de acolhimento dos desejos de todas as pessoas na agenda pública, alguns líderes têm se destacado da política formal e representativa pelo simples fato de falarem também ao desejo das pessoas nos seus instintos mais primitivos, como é o caso do presidente do Brasil Jair Bolsonaro. E quando uma liderança politica se dirige diretamente e de maneira clara à demanda dos desejos instintivos dos indivíduos, ela está literalmente subvertendo um certo jeito tradicional de fazer política, que supostamente fala mais à razão e menos às paixões individuais. E que desejos são esses?

Uma das grandes vantagens desse novo populismo urbano de extrema direita, que hoje no Brasil é representado pelo presidente Bolsonaro, sobre a política tradicional e relativamente normal, é que ele sabe compreender em que as massas urbanas querem e desejam ser representadas, mas dentro dos aspectos informais dos seus instintos de multidão, que em muitos casos, sequer precisam de muita coerência para votar em alguém, desde que o seu representante fale contra os gays por exemplo, porque talvez perto da casa de alguns eleitores de extrema direita, tenha um ponto de prostituição onde travestis se oferecem aos caminhoneiros que passam, e por isso esse tipo de eleitor associa toda a Comunidade LGBT com isso, e acaba votando em uma liderança que funcione como síndica da raiva que ele tem dos travestis que estão perto da sua casa. Associações como essa, que relaciona diretamente os gays à toda forma de pornografia da vida social, são feitas pelo Bolsonarismo e a sua militância. Muitas pessoas são vitimadas no dia a dia pelos incômodos ou pelas fatalidades da violência urbana, e por quem os indivíduos se sentem representados nesse quisto? exatamente também por homens e mulheres públicos que elucidarão o ódio desmedido que esses eleitores têm pelos chamados "bandidos". Mesmo que as promessas de endurecimento à criminosos pareçam até muito fantasiosas como a luta pela aprovação da pena de morte no Brasil. Pois salvo a imaginação muito fértil de uma minoria numerosa de pessoas com muito pouca noção de realidade, eu não consigo sequer imaginar o Brasil legalizando o CGC de empresas de enforcamento ou publicando editais de concurso para carrasco público. Mas também nesse tipo de militância política, o Bolsonarismo sempre esteve envolvido através de frases como "bandido bom é bandido morto". Há tipos de desejo que também ocorrem devido às nossas mais diversas frustrações em meio às tribos urbanas. Muitas pessoas gostariam de ter estudado bem mais que a sua formação básica, mas muitos motivos, como a própria incapacidade pessoal as vezes, usurpam de nós as possibilidades de alcançarmos uma cultura formal mínima. E como resultado disso, as pessoas se voltam também contra a própria classe dos professores ou contra as universidades públicas, que é um espaço formal onde aparece a figura dos intelectuais que têm maior visibilidade na nação. Sobretudo os profissionais das áreas humanas, os principais alvos do ódio ao saber universitário. Desta maneira, se aparece um político que fala que universidade pública é lugar onde só tem "maconheiro", onde só estuda "viado" e "sapatão" e onde quase todo mundo é ateu e quer mais é que Jesus se exploda, esse tipo de discurso encontrará eco nas pulsões internas do indivíduo que se frustrou por não ter estudado muito. Principalmente se o principal motivo da sua pouca escolaridade for ele ser simplesmente meio burrinho. E como o sujeito tem muitas dificuldades intelectuais para a compreensão de um debate político minimamente elucidativo, ele se sentirá bem representado também pela boca suja de uma liderança que só fala bobagem, que conta algumas piadas de boteco e que xingue meia dúzia de palavrões com regularidade. Até porque o palavrão do seu político ele consegue entender, mas em muitos e muitos casos, alguns cidadãos tendem a rejeitar as coisas que eles não compreendem a princípio. Inclusive por certa preguiça intelectual em alguns casos. E o Bolsonaro também sabe investir muito bem na política da boca suja, que por ser bastante simplória, se torna inteligível para todo tipo de gente. Inclusive para as pessoas mais obtusas. Mas quais são as desvantagens desse tipo de militância instintiva e molecular? O problema é que ela nos afasta das grandes e principais questões públicas e molares como uma educação básica de qualidade como infraestrutura do nosso desenvolvimento social e cultural, como uma saúde pública digna para todas as pessoas e como um projeto nacional de Ciências, de tecnologia e de industrialização que promovam o possível bem estar para todos na melhor medida possível.

Bolsonaro se elegeu como a primeiro presidente do Brasil que chegou ao pode se locupletando das novas tecnologias digitais. E é como eu digo sempre, toda vez que nós inventamos uma nova tecnologia relevante nós criamos novos homens e com novas formas de subjetividade. Desta maneira, quando a nossa aculturação tecnológica era analógica, também nós produzíamos cultura formal através dos nossos veículos de informação analógicos. Isso de uma certa maneira, nos fornecia um tempo mínimo de internalização formal dos discursos políticos, mesmo sendo expostos a nós como massas urbanas. Pois em boa medida, ainda éramos reféns dos veículos tradicionais de comunicação, que davam mais poderes de fala aos representantes, mas bem menos lugares para a voz dos representados. Mas as novas revoluções digitais que nos incluíram nessa atual vida em rede, logrou fazer a mitigação do poder de fala dos representantes nas mais diversas células dos representados E quem no Brasil de hoje está colhendo os despojos dessa antiga cultura de massa analógica desbaratada pela atual era digital? Jair Messias Bolsonaro. Pois quando a nossa cultura de massa era analógica, era muito mais simples capturar essa massa informe que habita em meio às multidões e dar a ela uma formação política mínima. Guardadas as devidas proporções, esse era o papel tradicional a ser realizado pelos sindicatos e pelos partidos políticos. Inclusive os partidos de esquerda pelo mundo fizeram muito isso. Incluindo também o PT no Brasil, que militou junto às suas bases comunitárias para  fazer o papel de mediação e de educação política aos grupos sociais mais carentes. Mas definitivamente isso se perdeu. E quando Bolsonaro fala as massas, ele se pronuncia sem o mínimo de compromisso em demovê_las do seu estado informe de massa urbana diluída em redes sociais. E ainda realiza um discurso anti_ciência de culto à ignorância formal. Bolsonaro simplesmente fala aos mais diversos desejos das pessoas, mesmo que muitos desses desejos sejam até contraditórios entre si.

Penso que hoje nós estejamos vivenciando uma das principais crises, senão a principal das crises históricas do modelo político representativo através do mundo. Principalmente em nações presidencialista, que concentram muito mais poderes nas mãos do poder executivo. E pelo visto, a extrema direita tem encontrado o seu caminho com muito mais facilidade que as outras forças políticas, pois ela simplesmente se dirige à massa informe pelas vias dos dos instintos mais primitivos. Mas quanto a nós e as outras forças políticas minimamente interessadas em educação política de base, precisaremos construir caminhos para uma nova Filosofia das Multidões, que seja novamente formadora. Não para que nós deixemos de nos dirigir ao desejos das pessoas, pois vida sem desejo é vida de cadáver, mas para que a gente realize a formação política na própria base popular da cultura de massa dentro da era digital. E esse texto e tantos outros que eu escrevo também têm esse objetivo.

Eldon de Azevedo Rosamasson

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