CRÔNICA E FILOSOFIA: PORQUE O BOLSONARISMO É MOLAR, E NÃO MOLECULARE

Antes de qualquer consideração, é muito importante dizer que quando eu me utilizo da palavra Bolsonarismo para falar do comportamento coletivo de quase todos os apoiadores do presidente Bolsonaro, eu não estou dizendo com isso, que haja por parte desses grupos, uma forma clara de conceitos sobre Filosofia Política como ocorre nos casos de tantos outros ismos que a História nos apresenta em exemplos como o do Liberalismo, do Socialismo, do Comunismo e etc. Até porque para isso, teríamos que ter uma conjunção mínima de produção conceitual e de atividade intelectual para que essa extrema direita gerasse um corpo doutrinário minimamente plausível, o que não existe nestes movimentos devido a inapetência quase completa de produção de cultura formal por parte do Bolsonaro e dos seus principais apoiadores. Neste caso contrariamente, os mesmos precisariam ser prioritariamente "molares", e não tão "moleculares" como eles costumam ser, a exemplo do que sempre foram as formas de "micropolítica que se assemelham ao Fascismo." Pois é exatamente nesse lugar microfascista de relações de poder que se encontra o Bolsonarismo, principalmente com a sua trupe mais fanática, ou seja, eles aparecem ao mundo em uma atitude molecular e passional de produção de conteúdos políticos, razão pela qual os seus militantes já atiraram até fogos em direção às dependências do Supremo, motivo através do qual a Policia de agora tem aumentado a cada dia os seus níveis de violência contra as populações mais vulneráveis, e dentre muitas outras causas, isso é também o motivo pelo qual hoje no Brasil há tantas queimadas e ataques ao meio ambiente, pois a produção de sentimentos difusos e moleculares é uma das principais características históricas desses grupos de extrema direita, que de uns tempos para cá tem ganhado espaços no mundo através desses vários tipos de militâncias fascistóides.

No primeiro capítulo do volume l de "Mil Platôs", de autoria de Giles Deleuze e Félix Guatari, aparece o exemplo que eles dão sobre o que esses autores chamam de ordem molar de "raiz pivotante", ou seja, esses pensadores apontam para os moldes sociáveis que organizam formalmente as nossas instituições históricas. Mas também, os mesmos concluem sobre a mitigação e a pulverização molecular dos símbolos de centralização do poder através da ideia de "Rizoma." Na árvore pivotante, a simbologia familiar com as suas raízes originárias, é o ponto que representa as ideias tradicionais de árvore genealógica da macropolítica molar de sincronia social dentre povos. Porém com os tempos da Modernidade em diante, essas paternidades da tradição, que são a geração dos nossos territórios molares, foram rivalisadas pelos  pontos de muitos outros sistemas diversos, onde cada um deles se relaciona um ao outro sem a identificação de uma base de familiaridade central nos seus vários agenciamentos molares. E finalmente, Deleuze e Guatari apresentam a ideia revolucionária e molecular de Rizoma. E esse, ao invés de privilegiar os pontos da árvore genealógica ou a ideia de sistema das tradições molares, privilegia muito mais as "linhas" ao invés dos pontos de origem e de convergência. Essas linhas também são chamadas de "processos", que em muitos e muitos casos, redundam no que os filósofos supracitados denominam de "linhas de fuga." Exemplificando, é exatamente aqui, imerso na imprevisibilidade muito específica dessas linhas que fogem ao controle do que é molar, linhas essas que são quase sempre indiscerníveis para uma crítica desavisada, que se encontra o Bolsonarismo e a sua "micropolítica protofascista". inclusive, alguns críticos preferem chamam_la de "política fascistóide", principalmente por causa do seu excesso de atitudes micropolíticas de linhas de fuga moleculares que se organizam em vários mecanismos de ressentimentos difusos, que se conectam via de regra, em torno da figura de um líder que se volta contra toda forma de instituição republicana.

Quando nós falamos sobre o que é molecular em detrimento do que é molar e vice versa, nós não estamos dizendo com isso de maneira nenhuma, que o que é molecular é necessariamente ruim e o que é molar é definitivamente bom ou o seu contrário, pois a crítica à essas diferenças deve ser dirigida sempre à maneira como o molar e ao modo como o molecular são utilizados como comportamento social e como atitude política.

Simplesmente não há e nem nunca existiram sociedades que não se organizaram em infraestruturas molares, pois é dessa maneira que os povos e civilizações sempre se codificaram nas suas três formas de "máquinas sociais" durante a História. Segundo Deleuze e Guatari, primeiramente nós nos codificamos em "máquinas territoriais", depois em "máquinas despóticas e agora em "máquinas capitalistas." Nas primeiras experiência como máquinas territoriais, os códigos maquínicis se orientavam em torno dos territórios que a natureza apresentava às pessoas. E para significar as forças naturais, era no próprio corpo que homens e mulheres marcavam, as vezes com a dor e com a morte, as mensagens dos espíritos da natureza. Depois, com a emergência da máquina despótica, as formas de organização da máquina social se descodificaram da máquina territorial e se redodificaram no corpo do déspota, que nessa fase, passou a simbolizar a medida de todos os valores da sociedade no corpo dos reis. E finalmente, chegamos na época atual, que é o tempo da máquina capitalista. E da mesma maneira como a primeira máquina foi codificada no corpo das pessoas tendo como base o território, da mesma maneira como a segunda máquina foi codificada no corpo do principal nome das monarquias, o Rei, a máquina capitalista se aproveitou da descodificação da máquina despótica  e recodificou os significados do mundo nas digitais dos bancos, que segundo Giles Deleuze e Félix Guatari, são os principais movimentadores da maquinaria molar que organiza o Capitalismo.

Mas para que haja a transição de uma máquina social para outra, sempre foi necessário que em meio à infraestrutura e a superestrutura molar das instituições que dão sentido aos grupos, surgissem as mais diversas linhas de fuga moleculares que descodificam e "desterritorializam" as máquinas sociais anteriores e as "reterritorializem" em novos códigos molares de superestruturas econômicas, sociais, culturais e políticas. Por exemplo, quando a Economia era molar dentro das suas estruturas despóticas ou de base feudal, haviam territórios bem definidos de "estratificação" social onde a terra era o grande "corpo sem órgãos", a grande "máquina abstrata" e o grande "plano de consistência" que detinha todas as possibilidades "virtuais" das maquinarias sociais. Mas a abertura do mercado internacional que aumentara consideravelmente desde os dias das Cruzadas, possibilitou algumas linhas de fuga moleculares rumo à futura economia capitalista e em direção à industrialização que a consagraria definitivamente. E uma dessas linhas transversais de fuga que promoveu novos processos de descodificação e de desterritorialização das máquina sociais anteriores, foi a formação dos muitos burgos comerciais, os quais foram as primeiras células do que viria a ser as grandes cidades da modernidade. Foi nesse contesto que os interesses moleculares dos primeiros burgueses em potencial, que começaram a enriquecer se aproveitando da abertura do mercado internacional, passaram a ocupar gradativamente os lugares de importância capital na superestrutura política dos estados em favor dos seus muitos interesses econômicos, que seriam  financiados pelas principais Instituições do Capitalismo, os bancos. Pois são eles que financiam até os dias de hoje essa grande máquina social de organização molar, que ocupa todos os processos de formação, de transformação e de "esquizofrenia capitalista" do mundo até os dias de hoje.

Quando Antônio Negri na sua obra O Poder Constituinte faz críticas às nossas tradições constitucionalista, sobretudo às que apareceram por intermédio da Revolução Vitoriosa de 1688 a 1689 na Inglaterra, da Revolução Americana de 1776, da Revolução Francesa de 1789, e finalmente, por intermédio da Revolução Russa de 1917, ele critica os excessos molares na gestão dos povos, os quais têm sempre como principal objetivo, a contenção das experiências populares com as suas paixões "constituintes" e revolucionárias, pois segundo Negri, as constituições são sempre formas de aprisionamento, que visam a um objetivo principal, que é o de conter a criatividade, as paixões e a exuberância do espírito constituinte que motivam as massas. Ou seja, o pensador em questão faz críticas à forma tácita como em nome da "Revolução" a tradição constitucional substitui o espírito revolucionário das paixões populares "constituintes" e as transforma meramente em formas constituídas de legalidade oficial, que na praxe sempre valoriza os setores mais abastados na escala social, em detrimento dos grupos menos favorecidos dentre as multidões, os quais também realizaram a Revolução. Desta maneira, surge a seguinte pergunta: se nós temos visto no Bolsonarismo críticas tão duras à Constituição, a ponto de seus apoiadores clamarem pelo fechamento do Supremo, pelo fechamento do Congresso e a ponto de alguns deles até pedirem intervenção militar para isso, não seriam essas supostas linhas de fuga moleculares legitimamente possíveis como intervenção revolucionária a exemplo das quatro revoluções supracitadas?

Porém essas linhas de fuga populares, moleculares e passionais que motivaram as principais revoluções que fazem parte da nossa memória ocidental, em nenhum momento foram linhas cegas de fugas, pois elas apontavam para os momentos de desterritorialização das tradições feudais, monárquica e míticas de outrora, que gradativamente se reterritorializariam de outras meneiras em modelos capitalistas, republicanos e laicos em novas estruturas molares de gestão das gentes. Porém a Modernidade que sucedeu a Primeira Grande Guerra Mundial, fez aparecer formas de embasamento político dentro do que as Ciências Sociais chamam de Totalitatismo. Foi neste contesto que que houve o advento histórico do Nazifascismo com os seus ressentimentos moleculares de inflamação passional de muitos grupos e sociedades. E como o Fascismo segundo Deleuze e Guatari é regularmente comparado ao Bolsonarismo por causa das suas características predominantemente moleculares de comportamento passional, é muito importante nós entendermos porque essa dupla de filósofos classifica o Fascismo dessa maneira, e o que essas disposições moleculares de motivação populista tem tanto de semelhanças com o Bolsonarismo.

Como nós já vimos, por mais que que as grandes revolacões do passado tenham sido realizadas a partir de linhas de fuga moleculares de descodificação e desterritorialização, elas se reorganizaram em novos códigos e em novos territórios. Mas Deleuze e Guatari, ao analisar o Fascismo, o aponta como  um movimento político prioritariamente molecular, inclusive com algumas fortes tendências autodestrutivas.

Quando as pessoas foram habitar nas cidades por causa da industrialização e das oportunidades que ela promoveu nos grandes centros urbanos, uma massa as vezes informe começa a ser formada em cada espaço de socialização com todos os tipos de novas subjetividades. Tais subjetividades geram também novas formas de tristezas, novos tipos de alegrias e novas categorias de angústias em meio a tantas multidões. É também a solidão existencial das grandes cidades, onde os cidadãos ainda têm que conviver com todas as características de medo, de depressão, de síndrome do pânico, de frustrações amorosas, de decepções profissionais, de expectativas políticas e etc. Tudo isso fez emergir um ator social, que de uma hora para outra saiu do seu anonimato para militar politicamente. E esse ator social e político é o cidadão "frustrado." É claro que em um momento ou outro da vida nós nos frustramos com muitas e muitas coisas que nos acometem. E evidentemente, somos também os grandes motivadores da frustração de outrens em muitos casos. Até aí, tudo aparentemente normal. Porém quando vários elementos micropolíticos de frustração pessoal interconectam_se para promover a destruição e a eliminação dos objetos da sua frustração e do seu ódio, nós temos o ambiente político ideal para a eclosão de comportamentos microfascistas e fascistóides. E me desculpem a redundância, mas eu penso que seja humanamente impossível a um crítico minimamente consciente não identificar esse tipo de comportamento nos apoiadores do Bolsonaro, sobretudo nos mais fanáticos.

O governo Bolsonaro é o resultado de várias contingências políticas que ocorreram em várias e várias linhas de fuga nesses últimos dias. Sobretudo a partir de 2013. Bolsonaro sempre se caracterizou pela virulência dos seus discursos oportunistas. Tais discursos virulentos já foram realizados em defesa de uma guerra civil no Brasil, a favor do fuzilamento de adversários políticos, na defesa da tortura contra opositores, na violência contra petistas, em frases como "eu sou homofóbico sim", em rumores de agressão contra jornalistas e etc. Mas o mais curioso, é que esses ataques ocorrem a muito tempo, desde quando ele elogiava e apoiava o Lula e o PT até agora quando o Partido dos Trabalhadores aparece como o seu principal alvo político. Porém foi a partir de 2013 que uma linha de fuga totalmente nova ocorreu e indiretamente o favoreceu. E ela se deu durante as manifestações contra o aumento das passagens de ônibus, que redundaram em uma  explosão de manifestações expontâneas por praticamente todas as principais cidades do país. Esses eventos forneceram expectativas as mais otimistas possíveis em várias consciências chamadas de mentes progressistas, pois aparentemente, como em pouquíssimos momentos da nossa História, a tal "multidão" de Antônio Negri, aqui no Brasil chamada carinhosamente de o "gigante adormecido", que teria finalmente acordado naquele momento histórico, aparentemente pretendia realizar as suas revoluções internas e "constituintes" de origem popular como nós jamais tivemos no país. Porém o que nós vimos, para o bem e para o mau, foram as mais diversas demandas e as mais difusas paixões moleculares. E como nós não somos um povo bem acostumado desde as nossas fundações e rupturas com o protagonismo político, e como nós não estamos muito habituados a estar dentro do debate público como multidão participativa, nós fomos mais uma vez capturados pela superestrutura molar constituída, mais uma vez nos silenciamos gradativamente e em mais uma oportunidade deixamos as ruas vazias, salvo em alguns momentos de fogo de palha político que de vez em quando chamuscam as nossas nádegas com pequenas faíscas de finais de semana.

Penso que nós estamos diante de dois grandes desafios agora, em primeiro lugar, precisamos encontrar pela primeira vez na nossa história, maneiras de participar de uma revolução constituinte e popular, que não seja apenas mais outra assinatura dos poderes constituídos, o que é um desafio cada vez maor hoje, devido ao desmonte que está ocorrendo nas instituições de base popular e nos sindicatos, que praticamente perderam o seu protagonismo. E em segundo lugar, necessitamos saber transformar essas oportunidades históricas de linha de fuga moleculares em inclusão das nossas reivindicações de povo para a feitura de processos molares de organização da sociedade brasileira por intermédio do debate público em meio às massas populares. Pois na última vez que nós tentamos fazer isso nas manifestações de 2013, o máximo que nós conseguimos fazer foi promover a Operação Lava Jato, prender o Lula e alguns corruptos de maneiras justas e as vezes duvidosas, fizemos o impeachment da presidenta Dilma e elegemos o político que mais se beneficiou com aqueles movimentos sociais, Jair Messias Bolsonaro. Mas por que isso aconteceu? Penso que nós ficamos paralisados nesses pequenos resultados também porque como nós não estamos muito habituados como povo a participar da feitura democratizante das leis do Estado, salvo em momentos de lampejo popular como na campanha das Diretas Já e como na Constituinte de 87 a 88, quem mais se aproveitou dessa lacuna, foram os grupos de ódio e de ressentimentos, que também estavam infiltrados nas manifestações de 2013. E como eles são grupos de ódio motivados pela infraestrutura molecular das paixões fascistóides, quem também saiu na vantagem a partir de 2013 foi o atual presidente Bolsonaro, pois é no espaço molecular do ódio e dos ressentimentos que ele e seus correligionários mais fanáticos operam politicamente. É por isso que esses grupos estão sempre contra alguma coisa. Eles estão sempre contra a "Globolixo," contra o aborto, contra a Comunidade LGBT, contra as feministas, contra as Ongs, contra a Ecologia, contra a Greta, contra o antiracismo, contra o STF, contra o Congresso, contra a ONU, contra Chico Buarque, Gil e Caetano, contra a Galinha Pintadinha e etc, pois todos seriam irremediavelmente comunistas. Mas o curioso, é que eles quase nunca são necessariamente a favor da conquista de um Brasil melhor para todos. Pois para que algo seja bem arquitetado para o bem da maioria, nós precisamos de o mínimo de conhecimento técnico, científico e de formas equilibradas e molares de bom senso. Mas no comportamento fascista, microfascista e fascistóides, o que prevalece é sempre os processos molares e mórbidos do ressentimentos.

Eldon de Azevedo Rosamasson

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