CRÔNICA E FILOSOFIA: COTAS DE PRECONCEITO

A Lei Afonso Arinos foi uma conquista importantíssima para que nós passássemos a enxergar, não só o preconceito racial com a sua devida atenção, mas com ela, as demais formas de discriminação também foram postar na agenda das nossas lutas políticas, cada uma  das quais com as suas devidas demandas e necessidades. Com o tempo, o feminicídio foi elaborado como norma legal para proteger mulheres da violência de gênero. Recentemente, a própria homofobia, além de já ser considerada crime, agora pode ser enquadrado como crime de ordem racial. Porém com todas essas conquistas, eu ainda percebo espaços específicos de práticas de racismo e preconceito, que têm lugares muito específico em casa setor da vida social, os quais eu chamo carinhosamente de cotas de preconceito.

Uma cota como nós sabemos, ocorre quando existe um fluxo de acontecimentos e ações que são considerados uma regra relativamente vezes geral. Neste contexto, as cotas são as intervenções para que fluxos de uma normalidade possam dar lugar à fenômenos de inclusão diferenciados à despeito das regras vigente. É com esse pensamento que nós criamos as políticas afirmativas para negros e pardos, para mulheres, as cotas para índios nas universidades e serviços públicos e etc. Muito embora eu pense que ainda falta incluir seres humanos como os travestis por dentro dessas políticas, pois os negros e pardos, os índios e as mulheres e etc têm pelo menos os subempregos as vezes para se colocar no mercado, mas os travestis, se não tiverem a sorte de ser artistas como a saudosa Rogéria, se eles não forem do mundo da moda e da Estética e se os mesmos não aprenderem a fazer unha e cabelo, esses cidadãos brasileiros não arrumam trabalho quase em lugar nenhum. Razão pela qual eu proponho que travestis também sejam incluídos em cotas universitárias, em cotas do serviço público e em cota de empresas mais generosas como o Magazine Luiza.

Porém neste texto, não é dessa cota regular, que já vem sendo praticada no país, que eu me refiro. Mas eu estou falando sim das cota da continuidade do racismo e do preconceito que ocorrem no dia a dia da vida de uma sociedade. Por exemplo, a poucos dias nós pudemos perceber esse fenômeno comparando dois eventos da cena política brasileira, pois quando o quase ministro da educação Carlos Alberto Decoteli foi literalmente linchado em todos os setores da comunicação por ter mentido sobre o seu currículo, havia inclusive da minha parte, uma certa dúvida que indagava assim, mas será que essa indignação toda com a mentira do Decoteli é pelo fato de ele ter dado todas essas carteiradas cheias de inconsistências ou será que é porque ele é negro? Mas o último evento envolvendo o atual candidato indicado para ocupar o lugar do ministro aposentado do STF, Celso de Melo, o Kássio Nunes Marques, não me deixou nenhuma dúvida, pois o Kássio também mentiu descaradamente sobre o seu currículo, mas as reações da sociedade, principalmente a partir dos meios de comunicação de massa, não foram a mesma do caso Decoteli. Mas aí resta uma pergunta, mas se os próprios meios de comunicação de massa e se a própria imprensa regular têm realizado uma ampla campanha  para que nós tenhamos uma melhor democracia racial em todos os lugares da pirâmide social, porque então a mídia foi tão dura com o quase ministro Decoteli, mas ao mesmo tempo tão branda com a indicação do Kaio Marques a ministro do Supremo, a despeito das inconsistências do seu currículo, que de cara já desconstrói um dos principais critérios para esse tipo de indicação, que é ter a reputação ilibada? A resposta que eu dou a esse pergunta tem tudo a ver com o título desse texto, ou seja, as razões principais desse comportamento da sociedade e da mídia neste caso está no que eu costumo chamar carinhosamente de cotas de preconceito.

Em uma experiência pessoal, eu tive isso que eu chamo de cotas preconceituosas, e em forma de racismo. Na época em que eu estava na faculdade de Filosofia, eu trabalhava durante o dia em uma empresa de funcionários muito humilde. Lá, eu era o locutor comercial, profissão essa que eu exerço até os dias de hoje como complemento à renda da minha profissão de professor da rede pública. Nessa época, havia uma animosidade muitíssimo grande em relação à minha pessoa nessa empresa, mas que eu não sabia a princípio, dizer quais eram as causas daquele comportamento de grupo, pois não havia uma trégua, era assédio moral em cima de assédio moral o tempo todo. Praticamente tudo o que eu fazia gerava assunto, mas sempre voltado para o âmbito do negativo. E até agredido eu fui. E assim foi durante os dois anos e nove meses que eu permaneci lá, por pura necessidade. Até que se aproximou o dia de eu ir para o serviço público lecionar Filosofia e Sociologia, devido a minha boa colocação nos concursos que eu fiz. Mas eu só pude chegar a uma conclusão sobre o porquê de todo aquele assédio, em um dia em que a loja simplesmente pegou fogo e quase tudo foi destruído. Essa empresa se localiza em frente às humanas da UFRJ, no Largo de São Francisco, na cidade do Rio de Janeiro. E como eu vivia constantemente nessa universidades por razões óbvias, eu costumava usar inclusive o seu banheiro, porque uma das diversões de muitos dos meus ilustríssimos colegas de trabalho, era filmar companheiros no banheiro da empresa e repassar as imagens entre eles. Mas como por causa do incêndio nós passamos a trabalhar para tentar salvar o pouco de mercadoria que sobrou, evidentemente, até pela interdição do Corpo de Bombeiros, não dava mais para usarmos o banheiro da empresa. Neste caso, ou usávamos o toilette da universidade ou fazíamos tudo nas calças  e nas saias. Mas como eles tinham muito constrangimento de entrar em uma universidade pública, eles só tinham coragem de ir ao banheiro da UFRJ, se eu, o suposto intelectual, fosse ate lá junto com eles, apesar da UFRJ ser uma Instituição pública sustentada com os nossos impostos. Foi aí que a minha ficha caiu de vez. Ou seja, todo o problema que a maioria, não todos é claro, tinha comigo, era porque eles eram pessoas muitíssimo humildes, porém sem maiores perspectivas acadêmicas, razão pela qual eu era considerado uma espécie de crioulo metido a intelectual, que vivia entrando na UFRJ, que tava sempre com um livro na mão e sempre chegava na loja com panfletos de programações culturais, as vezes gratuitas, do centro da cidade, para que quem quisesse ir fosse após o expediente. Isso não deixa de ser também uma cota de preconceito. Ou seja, era como se eles pensassem mais ou menos assim, nós podemos nos relacionar normalmente com qualquer pessoa da empresa, negra ou não, mas não com um negão metido a branco, que faz faculdade de Filosofia pra tirar onda de gostosão. E pasmem, eu penso que se eu fosse um cidadão loiro e tivesse os olhos azulados de preferência, as reações seriam muito menos agressivas, assim como as reações contra o quase ministro Decoteli também foram muito mais duras que em relação ao Kássio Marques, apesar de ambos terem praticado o mesmo ilícito de ordem moral.

Na História do Brasil, para ser mais específico, na História da Arte, tivemos um excelente exemplo disso que eu denomino cotas de preconceito. Durante os idos da década de 60, surgiu um grande astro na música popular brasileira, Wilson Simonal. Simonal além de ser simplesmente genial como cantor, compositor e intérprete, não fazia muito o estilo do estereótipo que muitas das vezes as pessoas esperam de um negro. Ele era o típico "negão metido" do preconceito popular, pois ele era extremamente auto confiante, o negão falava e se comunicava muitíssimo bem e segundo os testemunhos da época, o cara ainda fazia um tipo bastante ostentador. Além de não ser muito simpático sempre. Inclusive segundo o jornalista Nelson Motta, que viveu muito bem o ambiente artístico e midiático desses tempos bem no olho do furacão dos acontecimentos, não titubeia em dizer que foi isso mesmo, Simonal não fazia o estilo crioulo fazendo crioulisses, que a sociedade as vezes espera de um cidadão de pele escura, como o próprio Jair Rodrigues representava. Não que o que o Jair fizesse fossem as chamadas crioulices, mas ele estava muito mais de acordo com a negritude dócil e domesticada que os nossos padrões culturais esperam com mais regularidade de um cidadão de cútis mais escura. Por isso, as vezes ressentida com a inclusão do maior número possível de pessoas com a pele muito preta em uma maior visibilidade social, grande parte dessa mesma sociedade, que diz formalmente que é contra o preconceito e que é a favor da inclusão, se vinga radicalmente de alguns sujeito de pele mais negra, de um gay ou de um trans que ocupa certos lugares de destaque na pirâmide social e tem uma postura um pouco ou muito diferente do que na média os indivíduos esperam desses grupos mais discriminados. Com o tempo, Wilson Simonal foi acusado de ser um "dedo duro" da ditadura e de entregar colegas do mitié para os militares. Mas segundo disse o próprio Nelson Mota, muita gente que de fato fazia isso, continuou desfrutando de portas abertas e escancaradas em todos os lugares da mídia e do estrelato. E o mais curioso, é que mesmo a classe artística, que em tese é um pouco mais tolerante com as diferenças, também foi muitíssimo impiedosa com o Simonal, muito mais que com outros cidadãos de cútis mais pálidas que fizeram a mesmíssima coisa que ele fizera em tese. Repito, em teste. Guardadas as devidas proporções históricas, foi isso que ocorreu com Carlos Alberto Decoteli, que foi socialmente preterido, a despeito de ter feito eticamente a mesma coisa que o senhor Kássio Nunes Marques fez, mas sem que o último fosse devidamente punido por atitude idêntica a do Decoteli. E em comparação era isso o que acontecia comigo entre pessoas que entendiam que por ser negro eu não teria o direito de ser um filósofo devido a mais esse fenômeno de cota de preconceito.

Após os melhores momentos do governo PT, também ocorreram coisas semelhantes, pois havia na sociedade brasileira, uma certa demanda por mais serviços sociais por parte do Estado e uma expectativa de que as pessoas mais carentes chegassem a alguns lugares de maior destaque na pirâmide social, os quais cidadãos mais empobrecidos não haviam  chegado jamais. Evidentemente, o governo petista foi muito tímido na sua tentativa por uma melhor inclusão social, pois ele não atacou diretamente as nossas principais demandas sociais como na área da educação básica, como nas áreas da democratizacão da Ciência e da Tecnologia, e principalmente, como nas áreas da saúde. Mas segundo as pesquisas, houve mais transferências de renda das classes mais favorecidas para os grupos mais vulneráveis. Muito embora os banqueiros nunca tivessem lucrado tanto. O Brasil chegou a sair do mapa da fome, principalmente até 2014. Os grupos mais carentes passaram a frequentar mais as universidades. E etc. Mas a partir do momento que a crise começou a deixar as suas brechas no pais, sobretudo a partir do segundo governo Dilma, também reapareceram as cotas de preconceito contra o mínimo de serviço social prestado às populações mais vulneráveis. E acima de tudo, apareceu um estranhíssimo ressentimento contra as inclusões sociais aqui alcançadas, mesmo sendo muito tímidas. E mais uma vez se manifestou o ressentimentos social das cotas de preconceito. Principalmente por parte dos cidadãos chamados de os "fracassados", que talvez tenham sido as pessoas que mais se ressentiram por não terem aproveitado as oportunidades oferecidas no governo petista. E por isso, agora se vingam ferozmente através do ódio das bolsonarices, dos seus pares que souberam ou puderam aproveitar as oportunidades dadas outrora.

Da mesma maneira como nós hoje buscamos as cotas para que grupos mais discriminados da sociedade ascendem socialmente, também é muito importante chamar a atenção para a cota reversa de preconceito tratada neste texto. Pois nós criamos toda uma linguagem de anti preconceito para nos proteger contra o racismo e entes similares, mas não podemos nos esquecer que qualquer forma de discriminação se manifesta em um formato estrututal. É por isso que nós já vimos novelas da Globo sendo gravadas na Bahia, mas que o elenco da novela não correspondia a população negra baiana, que é o Estado brasileiro com a maior percentual de gente negra do país, quiçá fora da África. É por isso que por mais que existam alguns comentaristas negros no universo do Futebol, o número de profissionais do comentário com a cútis mais escura não corresponde muito ao número de ex jogadores negros, que com certeza, também gostariam de fazer comentários na TV. E por mais que as próprias universidades públicas sejam importantes defensoras das leis de cota, mesmo nas humanas, que são as grandes defensoras da inclusão, também não têm um número de professores negros que corresponda ao número desse estilo de cidadão na sociedade brasileira. E por que isso? É que por mais que a própria universidade lute contra o preconceito, o racismo também tem cotas sociais para permanecer existindo.

Concordo com o filósofo Paulo Guiraldeli quando ele diz que uma das maiores armadilhas supostamente antiracistas está em uma frase muito comum do identitarismo, que é o dito "lugar de fala," pois por mais que essa frase aponte para uma necessidade de dar voz a algumas minorias, esse dizer tem aí uma certa pitada da cultura das cotas de preconceito. Por exemplo, quando uma pessoa diz assim, "esse é o meu lugar de fala," ao mesmo tempo, ela está confirmando uma das maiores estratégias do preconceito e do racismo estrutural, que é circunscrever cidadãos das minorias apenas a alguns lugares específicos. Quase ninguém acha estranho um negro, um gay e até um trans ser sucesso nas carreiras do mundo artístico. Quase ninguém estranha se um negro, se um nordestino e até um indígena ficar milhonário jogando futebol. E etc. Mas um negro, um indígena, um travesti ou um trans ser professor universitário, ser um médico ou ser um engenheiro, isso é bem mais difícil. E se a gente insistir demais nessa história de que esse é o meu lugar de fala, caso sejamos representantes de grupos de pessoas mais discriminadas, nós poderemos ter a seguinte reação por parte da sociedade, que poderá responder tacitamente dessa maneira, ok, esse é o teu lugar de fala, então continue aí, só neste teu lugar. Ou seja, se nos comportamos assim, permaneceremos admitindo políticas sociais sem preconceito e antiracistas, porém mantendo as mesmas cotas sociais do preconceito.

Eldon de Azevedo Rosamasson

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