AGENDA MORALISTA E AGENDA HUMANISTA

O pronunciamento do pastor americano David Eldridge em congresso de juventude de uma das convenções da Igreja Assembleia de Deus em Brasília está sendo denunciado como mais um crime de ódio à comunidade LGBTQlA+. O religioso citou no evento vários tipos sociais deste grupo humano e para cada um deles ele soltava a seguinte sentença polêmica: "tem um lugar reservado no inferno." Mas até que ponto a liberdade de expressão com os seus limites expostos na letra da lei realmente evidencia que dizer que determinados atos da sexualidade são pecaminosos é crime perante o Código Penal e contraditório diante da nossa Constituição? Será então que o Papa Francisco cometeu crime de ódio ao dizer categoricamente que a homossexualidade é pecado? Será que isso é uma questão de crime ou apenas questão de tom no momento da pregação? Para respondermos a essas perguntas teremos que nos apoiar indubitavelmente na Declaração Universal dos Direitos Humanos, pois liberdade de expressão e liberdade sexual está como cláusula pétrea não só nas plataformas humanistas, mas creio que na maioria esmagadora das tradições democráticas do planeta.

Já faz algum tempo que eu venho dizendo que certos aspectos da pregação desse povo crente não é um caso de direito ou não de dizer que certos comportamentos podem levar os seres humanos rumo aos mármores ardentes do fogo eterno. Afinal de contas o direito de culto não é somente a liberdade de ir até a um lugar chamado igreja, terreiro ou centro cultuar os seus vultos sagrados. Culto vem do mesmo radical de cultura. E ter cultura é possuir também a possibilidade de pensar, de reagir e de refletir em grupos humanos em prol de pensamentos coletivos. E dizer que a homossexualidade é pecaminosa faz parte da tradição primária da herança judaicocristã desde quase sempre. Será então que diante dessa realidade temos agora que criminalizar a todos que refletem de acordo com tal cosmovisão, inclusive o Papa Francisco e todas os segmentos protestantes e católicas? Pois salvo o mais puro cinismo, quase todos nós sabemos que onde existem dois ou três reunidos no nome do Deus da Bíblia há quase automaticamente a ideia implícita e explícita da pregação contrária à homossexualidade. E mais, nós sempre entendemos que é plenamente sustentável que a tradição religiosa diga que homem com homem e mulher com mulher não é coisa de Deus, mas mesmo assim a população QlA+ sempre persistiu em existir viva, linda e fogosa sem maiores atropelos por causa disso. Desta maneira o que mudou e o que nos deixa tão indignados com certas homilias que mesmo sendo pregado isso que sempre foi dito normalmente agora cause alguns desconfortos maiores? Será tal uma questão de tom no ato da pregação ou será isso mais um caso de modulação na agenda políticoreligiosa?

Olhando para o que são os Direitos Humanos e a disfonia ideológica que existe entre a população LGBTQlA+ e a tradição religiosa mais ferrenha, parece até que nós estamos diante de uma esquizofrenia quase insolúvel, pois dentro de tais direitos a homossexualidade e o Cristianismo nas suas mais diversas matizes que estão lá no interior da Carta constitucional  estão em um mesmo escopo garantista o qual  na letra da lei é inclusive cláusula pétrea. E que clausula pétrea é essa? Tal cláusula é simplesmente a questão dos direitos individuais. Serei mais claro, vamos supor que uma pessoa muito indecisa chegasse para a senhora Constituição do Brasil e dissesse assim: tia Constituinte, eu quero ser gay. Com a mais absoluta certeza a senhora do nosso documento maior diria, tudo bem meu sobrinho, você está no pleno usufruto dos seus direitos individuais. Mas vamos pressupor que mais tarde o mesmo indivíduo se aproximasse da mesma carta magna e falasse o seguinte: sabe de uma coisa dona letra, eu mudei de ideia, não vou mais ser gay, agora vou ser evangélico. Espantada com o advento a inspiradora maior das nossas leis olharia incrédula para ele e responderia: mas você já me falou isso, por que repetes o que dizes? E por que eu estou usando essa fábula ilustrativa com esse desfecho aparentemente estranho? Pela seguinte razão, por mais que a homossexualidade e a tradição evangélica, católica, testemunha de Jeová e etc pareçam tão antagônicas, no garantismo da lei os homossexuais e os cristãos são uma espécie de irmãos no mesmo direito constituído. E como eles fazem parte de uma mesma diretriz chamada "dos direitos individuais", para a nossa Constituição ser evangélico, ser católico, ser espírita, ser homossexual ou coisas do gênero pertencem a uma mesma essência legal e jurídica. A ponto dos tais serem membros no direito de uma mesma igreja jurídica, a igreja que garante a todos a possibilidade de decidir sobre os melhores caminhos que competem à sua liberdade. Será que os cristãos e religiosos mais tradicionais tem a intuição dessa irmandade legal e principalmente com as últimas aparições da extrema direita no mundo se aproveitaram desses últimos fenômenos socioculturais para impor uma agenda moralista por sobre a agenda humanista?

Nem sempre a coisa é uma questão de quem está certo ou de quem está errado. Eventualmente ocupa espaço maior nessa luta por hegemonia os grupos humanos e ideológicos que mais se utilizam dos fóruns mais viáveis à construção dos seus direitos. E em comparação com a comunidade LGBTQlA+ os evangélicos e até mesmo os católicos mais tradicionalistas têm perdido força hegemônica não por estarem errados necessariamente, mas porque ao fazerem as suas reivindicações eles as fazem no fórum errado, ou seja, dentro do fórum moralista. Por outro lado a comunidade QlA+ avança na conquista das suas vozes a serem ouvidas e reverberadas porque ao discutirem sobre as suas ideias eles o fazem nos fóruns mais assertivos, ou melhor, nos fóruns humanistas, pois se os religiosos têm uma demanda moral ou espiritual para com a homossexualidade e para com com muitas outras questões de gênero isso é um problema espiritual e sexual que tecnicamente é somente deles. Mas quando as nossas demandas são orientadas por valores  humanistas como fazem os seus adversários a questão neste caso pertence a todos, pois é cada homem, cada mulher, cada gay, cada lésbicas e cada simpatizantes que têm que respeitar os direitos humanos e consequentemente a Constituição de cada país signatário de tais direitos como é o caso do Brasil.

Em tese os religiosos mais tradicionais têm razões para estarem preocupados devido à perda de espaços hegemônica na consciência das nossas sociedades. Evidentemente que houve certa reação na onda de extrema direita que varreu parte do mundo desde meados de 2008. Inclusive o Brasil com o transloucado Bolsonarismo dizendo frases do tipo "Brasil acima de tudo, Deus acima de todos" e com a desastrada Damares em pérolas como "meninos vestem azul, meninas vestem rosa." Mas isso não aconteceu e não acontece somente no Brasil. Geralmente quando o extremismo, sobretudo quando os extremismos de direita aparecem, eles lançam mão dos discursos sobre o Deus dos seus livros sagrados para batizar de simplismo as diversidades propostas na democratização do debate político. Esse Deus da consciência religiosa tradicional é indubitavelmente uma divindade sexista onde homens e mulheres devem ter lugares muito específicos nas sociedades. E é evidente que neste contesto grupos de dissidência como a população LGBTQlA+ só podem encontrar lugares de convivência no espaço da discriminação. Porém a laicidade jurídica retirou esse Deus da tradição mais ferrenha pela porta da frente do Estado Moderno onde nós habitamos. Mas parte da religião quer traze_lo de volta às leis pela porta dos fundos das constitucionalidade atuais. Porém eu repito agora a reflexão a qual expressei acima, com esse procedimento os grupos mais religiosos só têm alcançado perda de espaços na luta pela hegemonia uma vez que o seu discurso puritano tem performance moralista, mas perde o debate para a tradição QlA+ porque essa última se vale da agenda humanitária para se blindar das possíveis e inevitáveis contradições.

Eu não entendo que seja um contrasenso uma pessoa ter o direito de dizer que certos comportamentos da homossexualidade sejam incompatíveis com a sua crença e que quem os praticar não teria o direito de desfrutar da vida eterna em Jesus Cristo como afirma a tradição judaicocristã mais conservadora. Mas por que mesmo assim nos indignados ao vermos alguém falar com aparente desrespeito que as pessoas da comunidade LGBTQlA+  tem um lugar reservado no inferno? Em primeiro lugar eu penso que Isso seja em função do tom e do aparente desamor na entonação da homilia. Caso contrário teríamos de colocar na cadeia a todos os religiosos das seitas que professam o Judaísmo, o Cristianismo e quiçá o Islamismo por intolerância religiosa e racismo. E pasmem, teríamos inclusive que afirmar que até a Bíblia e quem a professa nesses termos são igualmente intolerantes e racistas. Em segundo lugar a nossa indignação com aparentes grosseiras se dá pelo fato dos religiosos mais tradicionais não conseguirem convencer a sociedade de que o direito deles fazerem críticas pontuais e bíblicas à comunidade QlA+ está também dentro da agenda humanitária e da cláusula constitucional e humanista que versa sobre os direitos individuais. Ou seja, quando os gays, lésbicas e simpatizantes falam eles sabem atrair a hegemonia do debate para os seus discursos uma vez que hegemonicamente houve o convencimento de que a sexualidade fluida é direito humanitário, estando os seus praticantes eventualmente certos ou errados na debatedeira e na treta, pois estar certo ou errado nem sempre importa nestes casos. Mas quando os religiosos mais conservadores se vêem no direito de fazer determinadas críticas à sexualidade alheia tais ainda não conseguiram convencer a formação das opiniões de que eles não são apenas idiotas moralistas, mas sim que tais também devem gozar do direito humanitário de se expressar de acordo com os direitos individuais da Declaração Universal dos Direitos Humanos e da Constituição da maioria esmagadora das democracias regulares do mundo onde o Brasil também habita.

A coisa é tão séria que se hoje chegar uma família homoafetiva em uma igreja, se ela quiser fazer parte da membrezia,  se os seus membros internarem participar normalmente das atividades da instituição e o pastor não quiser deixar por causa da condição do casal pode ser até que o líder da seita sofra sanções por discriminação e racismo de forma inafiançável. E talvez antecipando_se a tais constrangimentos o Papa Francisco já se antecipou incentivando a recepção regular de tais cidadanias na Igreja Católica. Mas neste caso quem estaria certo, o casal gay que quer o direito de não ser discriminado em uma religião ou o pastor da Igreja tentando impedir o  livres acesso da família na organização? Na verdade ambos estão corretos, pois a Constituição brasileira, baseada nos Direitos Humanos, fala tanto que ninguém será discriminado por atos da liberdade sexual como por pensamentos de interpretação religiosa. Mas repito, como a comunidade LGBTQlA+ se apropria melhor da esfera humanista dos seus direitos, em detrimento da agenda moralista dos religiosos mais tradicionais, ela tem levado certa vantagem hegemônica no diálogo com a sociedade. Evangélicos, vocês precisam resolver esse problema.

Eldon de Azevedo Rosamasson

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