PECADO DO LADO, DEBAIXO E DENTRO DO EQUADOR
uma das canções entoadas pelo contralto da cantora da minha predileção, Zélia Duncan, ela diz que "na medida do impossível, tá dando pra se viver, na cidade de São Paulo, o amor é imprevisível como você e eu." Talvez a autoria da letra não tenha sido inspirada necessariamente na reflexão que aparece a mim nesta melodia, mas se de fato São Paulo é o centro urbano mais complexo que nós possuímos no Brasil, também é nesta metrópole que vivenciamos os fenômenos mais parecidos com o que Peter Sloterdjk denomina de o "cinismo" dos nossos dias em sua obra Crítica da Razão Cínica, uma vez que para o autor de Esferas, não há como escaparmos das contradições mais cínicas das novas e inovadoras urbanidades. Razão pela qual penso que de certa maneira, as vezes é na medida do impossível que dá pra se viver, não só na Cidade da Garo, mas também nos diversos centros urbanos onde o amor separado das contradições mais efêmeras é coisa mais ou menos imprevisível quase por definição. E por isso, orientado nos pensamentos deste parágrafo sobre o cinismo e sobre as possibilidades do amor, eu vou citar as nossas experiências recentes nas fronteiras entre o Peru e o Equador em plena crise recente de segurança na metade do mundo.
Neste janeiro de 2024, decidimos como casal em busca de novas vivências em lugares distintos, participar de uma viagem pela rota rodoviária mais longa do mundo, que no nosso caso, foi realizada por cinco dias entre São Paulo, onde o amor é imprevisível, até Lima, capital peruana onde provavelmente amar não deve ser tão diferente. Após ficarmos por um tempo no Peru, partimos de ônibus para o Equador com o objetivo de chegarmos às Ilhas Galápagos após alguns dias de estadia em Quito e seus amores, e assim o fizemos. E foi exatamente próxima à Linha que divide o mundo que pudemos presenciar um dos maiores cinismos da vida urbana que está sendo apregoado nos noticiários do mundo afora como se o atual governo do Equador estivesse combatendo o suposto terrorismo advindo da liderança das facção criminosas que se alojam como frentes de ilicitudes a partir das prisões. E sobre a maior das contradições vocês saberão agora, pois para me livrar de uma situação aparentemente insolúvel, eu ainda precisei predispor dessa mesma estrutura cínica e criminosa das mais explícitas para chegar à Quito e ir à Galápagos para depois voltar pra casa, pois a nossa passagem de volta para o Brasil estava em Quito. Mas por que eu fiz isso? Será que foi por desonestidade? Não necessariamente. Mas sem dúvida, por cinismo. Mas não se tratou objetivamente de um cinismo doloso, sequer culposo. Mas de um cinismo moderno, contemporâneo e urbano, que por fazer parte dos estilos e modos de sermos nos dias de hoje, eventualmente nos serve generosamente, apesar de todas as suas contradições.
Quando estávamos no Uber, andando rumo ao primeiro hotel da nossa aventura, o magrelo branco, muito falante e da cara ressequida que conduzia a gente falou da situação do Equador, que segundo os noticiários, não estava nada boa. Mas apesar dos apelos das pessoas que nos amam com amores previsíveis para que não fossemos para o Equador, assim o fizemos até o destino final, Gapápagos. Afinal de contas, tínhamos que ir pra este outro país, pois o nosso retorno estava em Quito. Mas quando chegamos na fronteira entre o Peru e o Equador, que divide as cidades de Tumbe e Huaquilla, tivemos uma surpresa que na hora foi simplesmente assustadora, pois todo turista que quisesse entrar no Equador por intermédio do Peru ou da Colômbia, tinha que apresentar um comprovante de bons antecedentes criminais do seu país de origem. E agora, o que fazer? Retornar à Lima pra voltar ao Brasil de ônibus não dava, pois além de dizermos às autoridades peruanas que ficaríamos no país só até aquela data, como fazer mais 24 horas até Lima pra pegar mais 5 dias de bus pro Brasil? Os olhos fulminantes da minha mulher nestas horas fazem a minha orelha esquentar até sair fumaça mesmo antes de começar a ouvir cobras, lagartos, mamutes e dinossauros. Afinal de contas, atravessar as Américas do Sul de ônibus sempre é uma ideia brilhante, que nesta família de três pessoas, eu, ela e Deus, é sempre uma ideia brilhante, mas só minha. Foi nesta emergência que eu precisei, por pura urgência, usar não apenas o cinismo da política de segurança equatoriana e peruana, que apesar da retórica, não está fazendo vigilância ostensiva nas fronteiras é porra nenhuma, mas eu necessitei lançar mão do meu próprio cinismo ao ter que chegar à Quito em uma estrutura criminosa, que nas minhas intenções, gerencia não só tráfico de muitas drogas e bugigangas, como também, o próprio tráfico de pessoas. Afinal de contas, como o nosso retorno ao Brasil estava em Quito, não havia como eu não permanecer no intuito final. Mas como funcionava essa tal estrutura cínica, que pelo menos até eu entrar no Equador, estava em pleno funcionamento? Pois se não existe pecado do lado de baixo do Equador, eu sou testemunha de que nós pecamos bem próximos à linha que divide o mundo.
Ao chegarmos à Tumbe, descobri que a pequena cidade poderia muito bem ser chamada, não pejorativamente de Terra de Malboro, mas sim de Lama de Malboro, pois a mesma parece que jamais ouviu falar de piche, de paralelepípedo, quiça de algo tão sofisticado como uma boa pedra de asfalto. Estando no ponto final, fomos acintosamente abordados por taxistas que nos ajudariam a atravessar a fronteira. Desta maneira eles deram um precinho bem próximo a 1 dólar. Mas no caminho os dois indivíduos que estavam na frente do veículo mudaram o valor da corrida para 30 dólares por pessoa até Huaquilla onde tomaríamos um bus até Quito. E antes de pegarmos o ônibus pagarmos mais 50 dólares por pessoa até o meio do planeta, o que completou os atributos nada religiosos de uma infraestrutura claramente ilícita que nos levou até o nosso destino. Durante o caminho, entre uma parada necessária e outra, entrava um policial rodoviário que não olhava o documento de absolutamente ninguém. Só o meu da primeira vez, pois eu ainda não havia compreendido totalmente os detalhes da trama e mostrei o nosso passaporte, cheio de receios é claro. O policial achou estranho não ter o carimbo da imigração, e eu justifiquei que nós teríamos que ir a Quito porque lá estava a nossa passagem de volta para lo Brazill, com essa justificativa, ele se foi com cara de paisagem como se nada estivesse acontecendo, para o nosso alívio quase orgásmico. Aí eu tomei uma decisão viril e patriarcal, pois como o nosso pasport estava sem o carimbo equatoriano de entrada no país, combinei com a Nira que no Peru e no Equador só mostraríamos a nossa identidade se necessário, pois essas nações aceitam regularmente o RG de brasileiros. Entretanto em tudo isso um detalhe me chamou muitíssimo a atenção, acontece que o carinha moreno com rosto de indígena que vinha no carona da frente, de Tumbe até a fronteira, vendo que eu estava com um baita de um carão muito puto, pois eu percebia que estava sendo superfaturado nos preços de passagem, procurava nos tranquilizar mostrando as experiências que eles tinham no tráfico de pessoas pelo mundo. Ou seja, pra eles tudo aquilo era muito normal. Ou melhor,, pra eles não existe pecado do lado, debaixo e nem pra dentro do Equador. Resultado final, o trajeto que nós poderíamos fazer no máximo entre 9 e 16 horas, e talvez por cerca de 35 a 40 dólares por pessoa segundo o doutor Google, fizemos em aproximadamente 28 horas e por 80 dólares americano por cabeça. Afinal de contas, o ônibus que nos levou à Quito, além de ser visivelmente clandestino, desconfortável e caro pra caralho, não poderia sequer passar por estradas com mais vigilância por razões óbvias. Por isso deu uma volta do cacete, viajou até os andes dando defeitos e ainda nos deixou lá na metade do mundo de madrugada, fora da rodoviária e em uma boa de uma friagem andina a mais de 2700 metros de altitude. Aí fomos obrigadoo a tomar um táxi até um hotel da cidade recomendado pelo taxista simpático com bafo de cachaça, pois o hotel mais barato que eu havia agendado estava fechado. Ditas todas essas coisas, vamos retornar aos temas mais marcantes sobre o cinismo que eu pude perceber em toda essa nossa experiência.
Evidentemente que o tema predominante deste momento no jornalismo equatoriano é sobre o suposto clima de "terrorismo" que vive o país. Ou seja, são coisas que por aqui nós chamamos de crime comum por causa da influência das facções criminosas desde as penitenciárias, seus toques de recolher, tiroteios e queimas de ônibus que são bem mais rotineiras entre a gente. Mas nas cidades do Equador, onde ainda nenhuma delas figurou entre as 50 cidades mais violentas do mundo, eles simplesmente não estavam "acostumabrados" com esses rumores de guerrilha em território urbano. Neste caso para tais é como se a besta do Apocalipse tivesse aterrizando na Linha que divide o planeta acompanhada das ressurreições de Hitler e Mussolini, e os três com o monopólio armagedônico da bomba atômica. Razões pelas quais o jovem e conservador presidente de direita do país, Daniel Noboa, no melhor estilo bolsonarista andino, não está perdendo tempo e está usando politicamente a situação de aparente crise na segurança, que segundo especialista e senso comum se agravou na pós pandemia, para gerar um sentimento nacionalista de combate ao suposto terrorismo para com isso angariar capital político baseado nos temores de uma nação assustado com muitas razões, mas com razões infladas pelo sensacionalismo dos telejornais dos datenas, ratinhos e alborguetis do lado de lá os quais falam durante horas e mais horas sobre a violência que teria tomado conta das ruas das cidades pelos terroristas, mas sem noticiar sequer uma morte que seja o resultado desta realidade aparentemente trágica. Ou seja, os assuntos e imagens sobre a tal crise eram quase sempre as mesmas desde o dia que eu cheguei à Lima.
Quando estou em outras nações, sempre fico ligado nas notícias sobre o que acontece em cada lugar, e o que se dizia en la mitad del mondo é que as forças armadas equatoriana, inclusive em aliança com países como como Peru e Colômbia, estariam participando de uma ostensiva vigilância nos aeroportos e nas fronteiras. Dito e feito em alguns casos. Repito, em alguns casos. Para entrar nos aeroportos Mariscal Sucre de Quito e no Terminal Beltour Baltra em Galapagos, era preciso não somente mostrar documentos, mas provar que o chek in já estava marcado. Nos processos até o portão de embarque, para além da revista até na bainha das nossas roupas, os caras quase enfiavam uma lanterna em cada um dos nossos póros e orifícios para ver se a gente soava fumaça de narguilê. Em cada ponto de embarque pra casa ilha galápago, onde o índice de delinquência regular e violência letal é muito baixo, era uma verdadeira palhaçada, pois as Forças Armadas estavam com armas até os dentes, cáries e gengivas contra nós turistas que só queríamos passear e curtir umas praias, ver tartarugas gigantes, penguins monogâmicos e da pata axul. Mas Curiosamente, lá nas fronteiras entre o Peru e o Equador, entre Tumbe e Huaquilla onde literalmente o bicho e a bicha pega, as autoridades de imigração exigiam só um certificado de antecedentes criminais. Só que sobre a tal presença ostensiva do Exército nas fronteiras como o governo do país estava propagandeando por intermédio da imprensa, e principalmente na imprensa marron, absolutamente nada acontecia. No atendimento, eu disse para o agente que não possuíamos o tal antecedente criminal exigido pelo governo, mas passamos assim mesmo com o nosso personal coiote. Mas Curiosamente, não teve sequer nem um recruta zero para nos impedir de fazer isso. Ou seja, até eu que sou uma pessoa bem distraída percebi que um dos problemas do tráfico que atinge o Equador hoje passa pelas fronteiras entre Tumbe e Huaquilla. Será que as autoridades de segurança ligadas aos governos do Peru e do Equador não sabem disso? Curiosamente a exigência de antecedentes criminais, segundo a imprensa, é apenas na entrada do Equador pelo Peru e pela Colômbia, onde até culturalmente os problemas são mais graves no que se refere à logística do tráfico. Sendo assim, será que as exigências sobre a declaração de antecedentes criminais existe hoje só como uma maneira de não resolver o problema assertivamente, principalmente com a participação das Forças Armadas do Equador, do Peru e da Colômbia? Que tipo de sociabilidade social, cultural, política e econômica têm nessas fronteiras para que tudo isso que eu narrei não seja devidamente combatido frontalmente pela atuação armada das instituições de segurança desses países. Evidentemente que eu não sou equatoriano, e muito menos colombiano e peruano. Muito embora já tenha passado por ambas as nações. E muito menos sou um especialista das Ciências Sociais a respeito desses lugares. Mas mesmo assim, eu me beneficiei de toda essa infraestrutura cínica para entrar no Equador, chegar a Quito, ir à Galapagos e voltar pra casa, pois a minha passagem de volta pro Rio estava marcada em Quito pra 24 de janeiro. Mas o que me causou espécie foi não só a falta de vigilância nas fronteiras entre o Peru e o Equador, principalmente entre Tumbe e Huaquilla, mas o vazio de informações na imprensa e nas tecnologias de comunicacão a respeito da centralidade deste problema específico de um pecado sem nenhuma expiação e livro sagrado que se encontra do lado, debaixo e pra dentro do Equador.
Eldon de Azevedo Rosa Masón
Filosofia com Eldon Rosamasson no YouTube
Rosamasson ponto Blogspot ponto com
Comentários
Postar um comentário